sexta-feira, 20 de setembro de 2013
terça-feira, 3 de setembro de 2013
Sobre dar
Minha música
DIZEM QUE A RAZÃO POR que embalam as criancinhas em ritmo binário é porque, durante nove meses, ouvimos a pulsação binária do coração da mãe. O ritmo binário do coração da mãe se inscreve no corpo da criancinha como uma memória tranquilizadora. Se isso é verdade, tem de ser verdade também que a música ouvida em tempos anteriores à memória consciente, no sono fetal, torna-se parte da nossa carne.
Comecei a ouvir música antes de nascer. Minha mãe era pianista e tocava. A música clássica é parte da minha carne.
Não é meu costume ouvir música enquanto escrevo. Fico possuído pela música, numa espécie de êxtase, e isso faz parar meus pensamentos. Contrariando o meu hábito coloquei no micro um CD de uma peça que nunca ouvira, sonata para violino e piano de César Franck. Minutos depois, eu estava chorando. Aí interrompi o choro e fiz um exercício filosófico. Perguntei-me: "Por que é que você está chorando?" A resposta veio fácil: "É por causa da beleza..." Continuei: "Mas o que é a experiência da beleza?" Sem uma resposta pronta, veio-me algo que aprendi com Platão. Platão, quando não conseguia dar respostas racionais, inventava mitos. Ele contou que, antes de nascer, a alma contempla todas as coisas belas do universo. Essa experiência foi tão forte que todas as infinitas formas de beleza do universo ficam eternamente gravadas na alma. Ao nascer, nos esquecemos delas. Mas não as perdemos. A beleza fica em nós, adormecida como um feto. Todos estamos grávidos de beleza, beleza que quer nascer para o mundo qual uma criança. Quando a beleza nasce, reencontramo-nos com nós mesmos e experimentamos a alegria.
Agora vem a minha contribuição. Continuo o mito. Há seres privilegiados – eles bem que poderiam ser chamados de anjos -, aos quais é dado acesso a esse mundo espiritual de beleza. Eles veem e ouvem aquilo que nós nem vemos nem ouvimos. E transformam então o que viram e ouviram em objetos belos que o corpo pode ver e ouvir. É assim que nasce a arte. Ao ouvir uma música que me comove por sua beleza, eu me reencontro com a mesma beleza que estava adormecida dentro de mim.
"Quando te vi amei-te já muito antes. Tornei a encontrar-te quando te achei." Essa é a mais bela declaração de amor que conheço, escrita pelo anjo Fernando Pessoa. Tu já estavas dentro de mim antes que te encontrasse. O nosso encontro não foi encontro; foi reencontro... Isso que o poeta diz para um homem ou uma mulher pode ser dito também para uma música: "Quando te ouvi, ouvi-te já muito antes. Tornei a ouvir-te quando te ouvi..."
O que me comoveu, então, não foi a música de César Franck. Foi a sonata que estava adormecida dentro de mim e que a sonata de César Franck fez acordar. Ao me comover com a beleza da música, eu me reencontro com a minha própria beleza. Por isso a música me traz felicidade...
Rubem Alves – PIMENTAS: para provocar um incêndio, não é preciso fogo
Cozinhar
OS TEXTOS SAGRADOS DIZEM QUE, quando Deus voltar à terra do seu exílio, a sua presença será servida como um banquete: todos reunidos à volta de uma mesa, comendo, bebendo, conversando, rindo... Deus se dá como comida. Tal como aconteceu no filme A festa de Babette, a feiticeira, com sua culinária, transformou a aldeia de pessoas amargas em crianças! O comer é um ritual mágico.
Comer é o impulso mais primitivo do corpo. O nenezinho tudo ignora: para ele, o mundo se reduz a um único objeto mágico, o seio da sua mãe. Nasce daí a primeira filosofia, resumo de todas as outras: o mundo é para ser comido. Disse alguém que a nossa infelicidade se deve ao fato de que não podemos comer tudo o que vemos. Sabem disso os poetas. Os poetas são seres vorazes. Escrevem com intenções culinárias. Querem transformar o mundo inteiro, os seus fragmentos mais insignificantes, em comida. Quem sabe numa simples azeitona... Poemas são para serem comidos. "Sou onívoro de sentimentos, de seres, de livros, de acontecimentos e lutas", dizia Neruda..." "Comeria toda a terra. Beberia todo o mar..." "Persigo algumas palavras...Agarro-as no voo...e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparando-me diante do prato, sinto-as cristalinas,...vegetais, oleosas, como frutas, como azeitonas...E então as revolvo, agito-as, bebo-as, sugo-as..."
A memória mais forte que tenho do cozinhar é a de um pai preparando um peixe para o forno. Ele ficava transfigurado. Acho que teria se realizado mais como cozinheiro. Quando via o prazer no rosto dos convidados, era como se estivessem devorando ele mesmo, o cozinheiro, antropofagicamente. Todo cozinheiro quer sentirse devorado. Toda comida é antropofagia, toda comida é sacramento. Fico a me perguntar: quais foram as razões que fizeram com que a culinária nunca tenha sido elevada à dignidade acadêmica de "arte", como a música e a pintura? Talvez porque o prazer da comida seja tão intenso que não deixa espaço para as funções contemplativas e intelectuais, ligadas às outras artes.
Rubem Alves – PIMENTAS: para provocar um incêndio, não é preciso fogo