Um livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive. (Padre Antônio Vieira)

sexta-feira, 28 de março de 2014

terça-feira, 25 de março de 2014

29 anos após democratização, leis da ditadura seguem em vigor

Quase três décadas após o fim da ditadura (1964-1985), o Brasil continua regido por uma série de leis, práticas e códigos criados pelos militares.

São daquela época, por exemplo, as atuais estruturas tributária, administrativa e financeira do país. E mesmo após a Constituição de 1988 definir como pilares do Estado brasileiro a democracia e o respeito aos direitos humanos, seguem em vigor normas e práticas que, segundo especialistas, contrariam esses valores.

É o caso, dizem eles, do Estatuto do Estrangeiro, que nega direitos políticos a estrangeiros que residam no país. Ou de um mecanismo que permite a tribunais anular decisões judiciais favoráveis a comunidades afetadas por grandes obras se as cortes avaliarem que as medidas põem em risco a economia nacional.

Gilberto Bercovici, professor de direito econômico e economia política da Universidade de São Paulo (USP), diz que, em busca de refundar o país e valendo-se de medidas autoritárias, os militares redefiniram as regras de várias das principais áreas da administração pública.

As ações, segundo ele, anularam os esforços da Presidência de João Goulart (1961-1964) para ampliar a participação popular na gestão do país.

"Até hoje isso (maior participação popular) não foi recuperado. Parece que temos na nossa democracia certos limites que não podem ser ultrapassados", diz.

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Bercovici cita a reforma agrária, que, mesmo prevista na Constituição de 1988, gera grande resistência e jamais foi plenamente realizada.

O professor atribui a manutenção de regras da ditadura em parte à instabilidade e à crise econômica que o país vivia durante a redemocratização. "Havia um entendimento de que havia coisas mais urgentes a se pensar".

Segundo Bercovici, outro estímulo à permanência das normas é a dificuldade na democracia para se chegar a consensos sobre mudanças.

Para o secretário Nacional de Justiça, Paulo Abrão, a manutenção da Lei de Anistia (1979) – que perdoou crimes políticos cometidos por militantes e agentes de Estado durante a ditadura – é um "escudo para que não se coloque o dedo na ferida em todas as demais pendências institucionais de fundamento autoritário" dos tempos da ditadura (leia texto ao lado).

A BBC Brasil listou algumas das heranças institucionais do regime de exceção que permanecem em vigor.

Política migratória

O atual Estatuto do Estrangeiro, que orienta a regularização de estrangeiros no Brasil, data de 1980 e foi inspirado pela lógica de segurança nacional.

Os estrangeiros residentes no Brasil são proibidos, por exemplo, de exercer qualquer atividade política (inclusive votar) ou de "se imiscuir, direta ou indiretamente, nos negócios públicos" do país. O documento veda também a regularização de imigrantes não documentados.

Paulo Abrão, secretário Nacional de Justiça, diz que a legislação é incompatível com o discurso oficial da política externa brasileira. Ele afirma que a proposta de um novo estatuto será entregue ao ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, na semana que vem e encaminhada ao Congresso em seguida.

Impostos, administração pública e finanças

Aprovado em 1966, o Código Tributário Nacional jamais foi alterado em sua essência. É ele quem define os impostos que municípios, Estados e União podem cobrar e os critérios gerais para a distribuição das receitas entre os entes federativos.

O atual Sistema Financeiro Nacional (SFN) também foi criado pelos militares na década de 1960. Uma das principais novidades do SFN foi a fundação do Banco Central, que tomou do Banco do Brasil as funções de organizar o sistema monetário. A lei que disciplina bolsas de valores no país também é daquela época.

Os militares criaram ainda o atual sistema de administração pública, que aprofundou a divisão entre a administração direta (exercida por órgãos subordinados a ministérios) e a indireta (autarquias, fundações e empresas públicas).

Práticas policiais

Ainda que a Polícia Militar (PM) tenha sido criada antes do Golpe de 1964, organizações que militam pelos direitos humanos dizem que, durante a ditadura, foram incentivadas práticas que violam esses valores e que seguem em vigor.

O advogado Eduardo Baker, da ONG Justiça Global, cita entre esses mecanismos o crime de desacato, "usado pela polícia como forma de intimidação em sua atividade cotidiana". "A existência dele permite que um policial leve qualquer um para a delegacia, colocando o policial acima do cidadão."

Outra prática criticada é o registro de mortes provocadas pela polícia como "autos de resistência". Segundo a Justiça Global, o mecanismo visa proteger policiais infratores e impedir a investigação de execuções sumárias.

A Secretaria Nacional de Segurança Pública não se pronunciou sobre as críticas. Tramita no Congresso um projeto de lei que prevê a investigação de mortes e lesões corporais cometidas por policiais durante o trabalho, mas não há prazo para a sua votação.

Exportação de armas

Desde os anos finais da ditadura, as vendas de armas brasileiras ao exterior são regidas por um documento secreto e jamais divulgado, a Política Nacional de Exportação de Material de Emprego Militar (Pnemem).

Segundo Daniel Mack, analista sênior do Instituto Sou da Paz, não há clareza sobre os critérios do Brasil para decidir sobre a exportação de armamentos. Mack diz esperar que, tão logo o Congresso ratifique o Tratado de Comércio de Armas, assinado pelo Brasil no ano passado, as operações se tornem mais transparentes.

O Ministério da Defesa disse à BBC Brasil que geralmente os contratos para a venda de armas têm, a pedido dos países compradores, cláusulas de sigilo, o que impede a divulgação das informações. O Itamaraty não respondeu os questionamentos sobre o tema.

Código Penal Militar

Aprovado em 1970, o Código Penal Militar dá margem para que civis sejam investigados por cortes militares. Organizações dizem que essa possibilidade, inexistente em vários países democráticos, contraria a Constituição de 1988. Elas defendem a extinção do código.

Críticas à manutenção da legislação ganharam força em 2008, quando o economista Roberto de Oliveira Monte se tornou réu na Justiça Militar acusado de "incitar à desobediência, à indisciplina ou à prática de crime militar" e "ofender a dignidade ou abalar o crédito das Forças Armadas".

A acusação se embasou em palestra feita por Monte em 2005, quando ele criticou as humilhações sofridas por militares por seus superiores e defendeu que os praças pudessem se sindicalizar. Já a Procuradoria de Justiça Militar diz que Monte fez "apologia à insubordinação" e empregou termos ofensivos ao Exército.

Políticas para a Amazônia

Críticos às políticas do governo na Amazônia dizem que, mesmo após a redemocratização, continua em vigor o modelo de desenvolvimento para a região preconizado pelos militares. "Ainda que a legislação atual preveja discussões e o licenciamento das obras, o objetivo maior do governo continua a ser exportar os recursos da Amazônia por meio de grandes projetos de mineração e energia, desprezando posições contrárias da sociedade", diz o jornalista e sociólogo paraense Lúcio Flávio Pinto, autor de 12 livros sobre a região.

Ele afirma que, ao empregar a Força Nacional de Segurança em canteiros de grandes obras na Amazônia, o governo federal visa impor sua vontade pela força, assim como faziam os militares. Para o advogado Raul do Valle, do Instituto Socioambiental (ISA), outro mecanismo da ditadura que, segundo ele, continua a legitimar políticas autoritárias na Amazônia é a Suspensão de Segurança.

Criada em 1964, ela permite a tribunais anular decisões judiciais favoráveis a comunidades afetadas por grandes obras se as cortes avaliarem que essas decisões põem em risco a ordem, a saúde, a segurança ou a economia públicas. O mecanismo tem sido usado para derrubar decisões que ordenaram a paralisação das obras da hidrelétrica de Belo Monte e de uma estrada de ferro que escoará minérios na região dos Carajás, ambas no Pará.

O Ministério de Minas e Energia e o Ministério da Justiça (responsável pela Força Nacional de Segurança) não se pronunciaram sobre as críticas.
 

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