Um livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive. (Padre Antônio Vieira)

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Parábola e conto de fada

Quando te chamaram de Branca de Neve,
O Lobo Mau te confundiu com Chapeuzinho Vermelho.
Sentiu-se João e o pé de feijão,
Pediu ajuda para João e Maria,
Fez acordo com os sete anões e
Depois foi pedir conselhos para Cinderela.
"Para que tantas flores Chapeuzinho?"
Ao final, foi fumar e tocar violão com a cigarra,
Apesar de ser parábola,
De não ser conto de fada.

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Quando os anjos calaram

Vem, volta sambar comigo,
Você dança tão bem,
Você dança como ninguém,
Fiz até um samba pro seu cavaquinho.

Lembro da roda de samba,
Da música boa, dos amigos,
Dos meus sentimentos rasos
E da sua roupa colirida.

Lembro que lhe chamaram
De Branca de Neve,
Que meus olhos não acreditaram,

Tão alva era a sua pele.
Naquela noite os anjos calaram
Só para observar seu samba leve.


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A poesia em si

A poesia em si
Não é nada para mi,
Só deixa só.
Mas tanto fá.

Não fique em dó,
Se eu levei ré,
Canto meu lá lá lá,
De forma qualquer.

A poesia só tem valor
Se é escrita com sangue.
Mas o sangue pode ser
Apenas tinta vermelha.
O que importa de fato
É a capacidade de sofrer do poeta.
E com relação a isso, meus amigos,
Este poeta chorão é um atleta.
Deixem-me ficar com dó em mi, que,
Mesmo lá, estarei só, em si menor sustenido.


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sábado, 29 de outubro de 2011

Você acende as horas

Meu amor, você acende as horas.
Meu amor, volta sem demora.
Meu amor, fica aqui comigo
Pra gente sambar.

Meu amor, eu te amo tanto.
Meu amor, resolve o meu pranto.
Meu amor, viaja comigo
Pra qualquer lugar.

Meu amor, faz acontecer.
Mostra tudo o que eu deixer de ver.
Acaba com essa minha dor
Não me faz chorar.

Amor tão bonito,
Tão realidade,
Acreditei tanto
Ser uma verdade,
Agora eu tô sozinho
Só faço chorar.


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Eu quero ser

Eu quero ser feliz,
Mas o meu coração só me faz triste.
Eu quero ser o que não existe.
Mudei de idéia: eu quero ser infeliz.
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terça-feira, 25 de outubro de 2011

Rosas e brasas

Lembra quando lhe disse
Que fui ao céu e voltei?
Tem uma parte deste incidente
Que, meu amor, eu não lhe contei.
 
Quando estava voltando,
Vi teu corpo do lado de cima,
E reparei: como é perfeito
Este ângulo que ninguém vira.
 
Mais perto cheguei, num zeloso sondar,
Notei tão lindas tatuagens coloridas,
Aflito, sem saber com qual brincar,
 
Percorri você inteira, e em tuas costas largas,
Macias, uma tatuagem que ria, dizia:
"Inoportuno, queres rosas? Terás brasas".

fabricio e fabiano foresti
www.palavrascomcheiro.com
 
 

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Tom Waits

É isso aí, tá tudo muito fácil. Acho inclusive que foi toda essa facilidade que produziu a geração mais bundona de todos os tempos, essa que está aí com seus iPhones enfiados no cu e um bonezinho com uma marca gigante na cabeça. Ninguém quer procurar, fazer esforço, CONSTRUIR alguma coisa. Não, o negócio é ficar na merda do facefuck o dia inteiro recebendo uma coisa "engraçadinha" depois da outra  e passando adiante. São mimados inúteis que jamais tomarão qualquer responsabilidade para si e seu grito de guerra é "Tá de boa". Caralho, nada irrita mais que ouvir essa merda, "tá de boa".

 
No The Guardian de hoje. 

Um belo trecho:

He is, he says, equally wary of the ease of search and shuffle. "They have removed the struggle to find anything. And therefore there is no genuine sense of discovery. Struggle is the first thing we know getting along the birth canal, out in the world. It's pretty basic. Book store owners and record store owners used to be oracles, in that way; you'd go in this dusty old place and they might point you toward something that would change your life. All that's gone."

http://talktohimselfshow.zip.net/

Cicatrizes e tatuagens

Sim, vou adormecer com as suas palavras
Que chegaram flutuando sobre as águas
De um outro planeta, e com precisão galáctica
Acertaram o meu coração como um cometa.
Sim, vou sonhar com você a noite inteira,
Minha musa que não é deste mundo,
Com todas as marcas que a vida lhe dera,
Aqui, neste meu quarto triste e escuro.
Quero que cada uma das minhas cicatrizes
Encontre todas as suas tatuagens
E transformem-se em uma miríade de matizes
Do vermelho, e através do meu coração-bagagem,
Ilumine os corações de todos os marginais e infelizes,
E em silêncio, lunáticos, continuemos nossa viagem.

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sábado, 15 de outubro de 2011

Soneto da Lua de Cristina

Peço para você, Cristina,
Que faça-me sentir e enxergar o belo,
Pois em meu mundo só existe ruína,
E o que sobrou foi destinado ao flagelo.

Sempre cometo os mesmos erros,
Enquanto você só faz acertar,
Em caminhos que não são terrenos,
Planetas obscuros que fico a imaginar.

Lá, não existe reminiscência,
Em suas ondas sonoras que vem de longe
Não tem nenhuma interferência.

Fica comigo aqui, lunar, e conte-me,
Mostre-me: a perfeição, como se faz?
Em silêncio, espacial, em sua lua errante.

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Não tem nada

Brinquedo, beijo, carinho,
Eu sei fazer, eu posso dar,
Tudo com calma e devagarinho,
Para nossas almas conversar.
Sorriso, abraço, versinho,
Eu sei fazer, eu posso dar,
Tudo com atenção, aos pouquinhos,
Para você se desimaginar.
Brinquedo, beijo, abracinho,
É possível sonhar
Todos esses carinhos?
Lembra, amanhã vamos brincar!
Tem uma estória, tem um beijinho?
Não tem nada, acorda, vai trabalhar.

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sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Para quem ousa e escreve

Oh Deus, estou tão satisfeito,
Por escrever esta poesia maluca,
Por obter êxito em minha labuta,
Em tornar grande este pequenino feito.

Conseguir falar de amor e dor,
Expressar-me coerentemente,
Usar palavras quentes, veementes,
Tudo sem nem um pouco de rancor.

A poesia, para quem ousa e escreve,
Mostra-se de fato um santo remédio.
Especialmente os sonetos, tão leves,

E ao final, pergunto-me: de quem é o mérito?
É dessa minha alma doente que vive nas estepes
Do meu coração que está enterrado e morto.


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O cheiro dos que amam

Preciso escrever uma poesia para ganhar o dia
Que está perdido, parado, sem nenhuma graça,
Quem sabe gargalhar? Contento-me com uma risada,
Mesmo amarela, e escrever qualquer coisa com magia.

Tem de falar de amor, de preferência conter muita dor.
Sofre coração, sofre que eu preciso escrever,
Mesmo que contra a parede minha cabeça eu tenha de bater.
Preciso de muita dor, eu preciso muito falar de amor.
 
Silêncio! Silêncio que eu quero ouvir!
Todas as emoções que se anunciam,
Todos os sentimentos que estão por vir.

E quando sinto o cheiro dos que amam, minh'alma clama:
Quero ver você com uma imensa vontade de chorar e rir!
Chegou sua hora coração, o soneto está pronto, o amor te chama.



f. foresti

Soneto do coração e da bailarina

Presta atenção coração:
Chega de fazer-me sofrer,
Já estou cansado de morrer
E sentir tanta emoção.

Traz a bailarina para perto de você,
Deixa ela dançar devagarinho
Com seus pés de passarinho
Nas ruínas desta superfície que ninguém vê.

Ela tem ritmo,
Que é tudo o que você precisa
Neste seu complexo sistema cardíaco.

Quando ela dançar virá a brisa
De uma vida leve, e de mansinho,
Voltará a bater este pedaço de carne moída.
 
f. foresti

Quando canto o que não minto...

Quero ser livre, insinsero,
Sem crença, dever ou posto.
Prisões, nem de amor as quero,
Não me amem, porque não gosto.
 
Quando canto o que não minto
E choro o que sucedeu,
É que esqueci o que sinto
E julgo que não sou eu.
 
De mim mesmo viandante
Colho as músicas na aragem,
Que a minha própria alma errante
É uma canção de viajem.
 
E cai um grande e calmo efeito
De nada ter razão de ser
Do céu nulo como um direito
Na terra vil como um dever.
 
A chuva morta ainda ensopa
O chão nocturno do céu limpo,
E faço, sob a aguada roupa,
Figuras sociais a tempo.
 
 
PESSOA, Fernando. Poesia: 1918-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 487 p.

O grande sol na eira

O grande sol na eira
Talvez seja o remédio...
Não quero quem me queira,
Amarem-me faz tédio.
 
Baste-me o beijo abstracto
Que o sol dá com o luzir
E o amor alheio e exacto
Dos campos a florir.
 
O resto é gente e alma:
Complica, fala, vê.
Tira-me o sonho e a calma
E nunca é o que é.
 
 
PESSOA, Fernando. Poesia: 1918-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 487 p.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Nexus - Henry Miller

MILLER, Henry. Nexus. Tradução de Sérgio Flaksmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 410 p.
 
Toda pessoa sincera tem uma certa dose de talento. p. 156
 
Um Sócrates atrelado a uma mulher insuportável, um santo assolado por mil infortúnios, um profeta coberto de piche e penas... para quê? Tudo grão para o moinho, dados para os historiadores e cronistas, veneno para a criança, caviar para o professor. E com isso e através disso, caminhando em ziguezague como um bêbado inspirado, o escritor conta a sua história, vive e respira, encontra a honra ou desonra. Que papel! Que deus nos proteja! p. 169
 
As mulheres, quando realmente gratas pela atenção que recebem, quase sempre acabam oferecendo o corpo. p. 236-237
 
Escrevemos sabendo que já estamos derrotados desde o início. Todo dia suplicamos por novos tormentos. Quanto mais sentimos coceiras e nos coçamos, melhor nos sentimos. E quando nossos leitores também começam a sentir coceiras e a se coçar, sentimo-nos sublimes. Que ninguém morra de inanição! Os ares devem estar sempre fervilhando de flechas de pensamentos lançadas pelos literatos, les hommes de lettres. As letras, vejam bem. Que formulação feliz! Letras reunidas por fios invisíveis tomados por imponderáveis correntes magnéticas. [...] Uma mente distribuída por livros, páginas, frases repletas de vírgulas, pontos, ponto-e-vírgulas, travessões e asteriscos. Um autor conquista um prêmio ou uma cadeira na Academia por seus esforços, ao outro só cabe um osso roído pelos vermes. Os nomes de alguns são dados a ruas e bulevares, os de outros a prisões e asilos. E mesmo depois que todas essas "criações" tiverem sido finalmente lidas e digeridas, os homens ainda estarão atacando uns aos outros. Nenhum escritor, nem mesmo o maior deles, jamais foi capaz de contornar esse fato duro e frio. p. 310
 
É desnecessário, nesse reino radioso, consumir excremento humano ou copular com os mortos, a exemplo de certas almas disciplinadas, e nem é necessário abster-se de comida, álcool, sexo ou drogas, à maneira dos anacoretas. Nem é obrigatório estudar horas a fio as escalas maior e menor, os arpejos, os pizzicati ou as cadenzas, como a progênie de Lizst, Czerny e outros virtuosi pirotécnicos. Nem a pessoa precisa se matar de trabalho para fazer mundos explodirem como fogos de artifício, de conformidade com as regras balísticas de semanticistas embriagados. É suficiente, e mais que suficiente, bocejar, espreguiçar-se, espirrar, peidar e relinchar. Regras são para os bárbaros, técnica é para os trogloditas. Basta de Minnesingers, mesmo que sejam da Capadócia!

Bailarina

Se eu pensar na bailarina
Eu posso até... sorrir.
Se eu lembrar da bailarina
Eu posso até... chorar.
Sim...
Se eu falar da bailarina
Todos atentos vão ouvir.
Se eu falar do seu jeitnho
Ninguém vai acreditar.
Sim...


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terça-feira, 11 de outubro de 2011

Gato Preto

http://ultralafa.wordpress.com/

Por que hoje é mais vantajoso vender editoras do que livros

 
RESUMO Às vésperas da Feira de Frankfurt, o mercado de livros discute seu futuro, delineado entre editores de perfil artesanal e intelectualizado e os conglomerados que buscam máxima rentabilidade em best-sellers e na compra e venda de editoras. Lançamento de romance nos EUA indica guinada no modelo de negócios.

PAULO ROBERTO PIRES

"LIVRO É UM produto como outro qualquer." Categórica e vazia, a frase é um mantra do mercado editorial globalizado. É repetida sempre que, num grande grupo editorial, há controvérsia sobre a publicação de determinado título.
Ela parte, em geral, de alguém que foi parar no meio editorial por contingência e destina-se, sempre, a um outro que ali faz carreira. O executivo transitório, que pode se ocupar de petróleo, sardinhas ou mariola, adverte o editor: não reivindique diferença e distinção para o que você faz, o trabalho intelectual é secundário no nosso negócio, que é vender livros.
Se à distância a situação soa esquemática como uma peça didática de Brecht, de perto ela é de um brutal realismo. Nesta semana, aliás, o mantra será repetido em várias línguas com o início da temporada anual de migração de editores. O destino, como em todo mês de outubro das últimas seis décadas, é Frankfurt, onde a maior e mais antiga feira de livros do mundo abre, nesta quarta-feira, como um sismógrafo das transformações do mercado.

CORPORAÇÃO Antes que o leitor se pergunte o que tem a ver com as agruras de uma corporação, é bom lembrar que o que acontece com esses profissionais acaba mexendo com sua cabeça e com a de seus filhos. Ou melhor, pode determinar que vossas cabeças sejam mexidas apenas pela pacífica mesmice das "tendências".
É desse mundo que nasce "O Dinheiro e as Palavras" [Bei, trad. Celso Mauro Paciornik, 152 págs., R$ 39] -e é com esse mundo que ajuda a fazer um nexo crítico. É dos títulos mais destacados de uma voga recente, a de livros que pensam, de dentro, os rumos da profissão e do que se publica no mundo. O autor, André Schiffrin, 76, desafina a tradição das "memórias de editor", em geral glosas dos próprios êxitos, e deita num divã público ao qual, inevitavelmente, acaba arrastando seus pares.
Não lhe falta pedigree nem conhecimento de causa. Seu pai, Jacques Schiffrin, criou a Bibliothèque de la Pléiade, coleção que na França é um santuário de clássicos, e, ao emigrar para os EUA durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45), fundou a Pantheon Books. Foi lá que André fez carreira e de lá saiu, depois de 30 anos na direção, quando viu o catálogo, formado em toda uma vida, desfigurar-se em sucessivas trocas de comando acionário.
Era o início de uma era de fusões que modificaria para sempre a paisagem da edição e da qual "O Negócio dos Livros" (Casa da Palavra, 2006), de 2000, o primeiro dos ensaios de Schiffrin sobre o tema, ainda é o testemunho mais eloquente. Publicado em mais de 25 países, na maioria deles como "A Edição sem Editores", o provocativo título francês, o livro seria seguido por "O Controle da Palavra" (2005), inédito no Brasil, e pelo atual "O Dinheiro e as Palavras" (2010).
Se no livro de estreia o tom era de denúncia, neste prevalece um estudado voluntarismo. Schiffrin pretende apontar caminhos para a sobrevivência de editores como ele, hoje guiado mais pelo interesse cultural e intelectual do que pelo lucro puro e simples. Em 1990, criou a New Press, casa sem fins lucrativos respaldada por fundações privadas e por quem se disponha a doar pelo menos US$ 250.
Editar livros hoje, defende Schiffrin, é atividade essencialmente parecida com o que era no século 19: no fundo das histórias e cifras de vampiros virginais, anjos apaixonados ou labradores amorosos está o trabalho artesanal de escritores, editores e artistas gráficos. A mudança crucial acontece, lembra ele, quando o ramo deixa de ser visto como ofício para se transformar em mais um negócio "de mídia" -com investidores à espera de lucros pelo menos três vezes maiores do que o padrão.
"As Palavras e o Dinheiro" arrisca análises sobre cinema e imprensa que, diga-se, não trazem novidades, mas servem para contextualizar o exame, aí sim certeiro, da indústria editorial. Do momento em que o livro passa a ser um produto "como outro qualquer".

ESPECULAÇÃO O diabo é que, no cassino da especulação, descobre-se logo que vender livros não dá tanto dinheiro assim -mas vender editoras pode ser um bom negócio. Mais do que isso, um jogo pesadíssimo, em que grupos multinacionais como o espanhol Planeta (onde trabalhei entre 2002 e 2004, na implantação de sua operação no Brasil) ou o alemão Bertelsmann, dois exemplos citados à larga, negociam casas editoriais como qualquer outro ativo.
Com a necessidade de lucros superdimensionados, toma-se por precisa a inexatíssima ciência da edição. A corrida maluca pelo best-seller, pelo próximo "big book", gera um quadro que Schiffrin descreve com crueldade: "As editoras progrediram do infanticídio, negligenciando os livros novos que não mostravam promessa de vendas, para o aborto, cancelando contratos existentes de livros que já não eram julgados suficientemente dignos. O objetivo agora é a contracepção, impedindo esses títulos até de entrarem no processo".

FRANÇA X EUA Criado e dividindo-se até hoje entre França e EUA, como dá conta sua ótima autobiografia, "A Political Education" (2007), Schiffrin tende a idealizar esses dois polos como representativos de visões de mundo. De um lado, o mercado supostamente autorregulado, fonte de todos os males e panaceia do capitalismo americano; de outro, as medidas protecionistas que na Europa protege a "exceção cultural", expressão que a França criou para desvincular a produção cultural da obrigatoriedade do lucro.
A ele encanta "o exemplo norueguês", conjunto de práticas governamentais que, das salas de cinema aos editores, garante a sobrevida de produtos que, definitivamente, não são como outros quaisquer. Mas o panorama é mais complexo, com o mercado francês engessado pelos conglomerados de mídia e o americano vendo aparecer interessantes casas de pequeno porte correndo por fora, com margens de lucro mais apertadas e catálogos mais diversos.
"O Dinheiro e as Palavras" considera pouco as saídas que o mundo digital pode trazer, e aí está uma de suas fragilidades -mas ele promete um novo ensaio sobre o tema (veja entrevista abaixo).
Mas e o Brasil nisso tudo? Sofre, é claro, as instabilidades de seu maior fornecedor de títulos, os EUA -mercado que nos dois últimos anos tremeu nas bases e parece recuperar-se mais devagar do que se esperava. Adiantamentos e tiragens superlativos deram lugar a movimentos discretos e a certa tranquilidade, se comparada aos acelerados (e milionários) leilões de direitos autorais.

THE END Em setembro de 2009, uma semana antes da quebradeira de bancos, o título de uma reportagem de Boris Kachka sobre o mercado americano vaticinava: "The End". No subtítulo, o resumo sombrio do que se seguia em 15 páginas da revista "New York": "O negócio do livro tal como o conhecemos nunca mais será o mesmo. Com estagnação das vendas, cabeças de CEOs rolando, a dança das cadeiras dos grandes autores e a Amazon despontando como o novo bicho-papão, o meio editorial terá que olhar para seu futuro fora do mundo corporativo".
Dois anos e um apocalipse depois, sobreviventes da crise começam a dar sinais vitais a um estímulo que atende pelo nome de "The Art of Fielding", de Chad Harbach. A imprensa, devidamente lubrificada por uma ofensiva de divulgação, trompeteia suas virtudes literárias e destaca recomendações entusiasmadas de autores tão diversos quanto Jonathan Franzen e James Patterson -endossos fundamentais, diga-se, para um estreante.
A despeito da carreira que possa fazer, o romance de 538 páginas que chegou às livrarias americanas no início de setembro tem um sentido especial para o mercado: os direitos foram arrematados pela Little, Brown por US$ 665 mil, num leilão típico do tempo das vacas gordas; a tiragem inicial, porém, foi de 30 mil exemplares, modesta e adequada à austeridade da nova era, em que o livro eletrônico começa a dizer a que veio -os e-books representaram um terço das quase um milhão de cópias vendidas de "Liberdade", de Franzen.

MAKING OF Ainda mais sintomático é que os bastidores do livro tenham virado o e-book "How a Book is Born - The Making of 'The Art of Fielding'" [como um livro nasceu - o "making of" de 'The Art of Fielding'"], disponível no Kindle por US$ 3,99. Keith Gessen, o autor, também é escritor e amigo de Harbach, o que lhe valeu esporadas da imprensa por uma suposta benevolência com seu camarada. Mas não conheço "making of" mais detalhado de um processo de edição hoje, concebido como "colaboração", eufemismo para uma verdadeira operação de guerra.
Harbach, que é fundador da revista "n+1", bíblia do típico intelectual do Brooklyn, trabalhou (sozinho) no livro por dez anos. Dava os retoques finais num texto que parecia interminável quando tudo apontava para o fim do mundo: no seu círculo de amigos, adiantamentos variaram entre US$ 750 mil e US$ 7 mil, refletindo a histeria e o pessimismo do mercado. Em tudo e por tudo, parecia estar no lugar errado, na hora errada.
"The Art of Fielding" foi recusado por diversos agentes -nos EUA, um escritor ou candidato a escritor não vai nem ao Starbuck's da esquina sem agente. Chris Parris-Lamb, jovem e experiente na profissão, gostou do original de Harbach (ou do que conseguiu ler: ele recebe cerca de 70 propostas por semana) e decidiu representá-lo.
O que se seguiu foi o típico conto de fadas do "publishing": bem estimulados, importantes editores passaram a disputar o romance que envolve beisebol, meditações sobre sucesso e fracasso e a triunfal saída do armário de um cinquentão. Parris-Lamb escolheu Michael Pietsch, que pagou US$ 85 mil a menos que seu principal concorrente. Tinha no bolso bem mais do que dinheiro: foi ele quem editou a última sensação da literatura americana, o chatinho David Foster Wallace.
Seguem-se operações inacreditáveis de marketing e relações públicas: foram enviadas a blogueiros, jornalistas e a qualquer um que pudesse falar sobre o livro 5.000 provas de divulgação -tiragem maior do que a de muitos dos livros literários no Brasil. O esforço inclui ainda as inevitáveis convenções com os livreiros, que saíram encantados com "The Art of Fielding".

RESSACA O caso é interessante porque, na ressaca da crise, mostra que algo pode ter mudado. O que decidiu o leilão foi o capital simbólico do editor, exatamente como acontecia em eras pré-corporativas. A tiragem modesta e a ênfase na divulgação fora da mídia tradicional também indicam que a complexidade desse "produto como outro qualquer" volta a se fazer presente.
Até o fechamento desta edição, "The Art of Fielding" figurava em modesto nono lugar na lista de mais vendidos no "New York Times". Na Amazon, ocupa a 42ª posição, atrás de Rick Riordan, primeiríssimo, e de Paulo Coelho, em 32º com "The Aleph". No Brasil, o livro sai no primeiro semestre de 2012 pela Intrínseca, editora de Riordan.
"O êxito de um excelente livro depende, no momento de edição, de uma infinidade de circunstâncias lógicas ou estranhas que toda a sagacidade do lucro não saberia prever", analisa um observador insuspeito, Denis Diderot. "Um erro que vejo ser cometido sem cessar por quem se deixa enganar por máximas genéricas", diz ele mais à frente, "é o de aplicar os princípios das manufaturas de tecidos à edição de livros."
Pode-se, pela mitificação, atribuir ao filósofo e editor uma espécie de clarividência, já que sua "Carta sobre o Comércio do Livro", da qual cito os trechos acima, foi endereçada a um magistrado francês em 1763. Mais realista e incômoda é a hipótese de que dedicava-se a pensar as peculiaridades de um produto então desconhecido, mas que, definitivamente, não era como outro qualquer.




O meu método de desforra

O meu método de desforra consiste em mandar, o mais rápido possível, uma atitude inteligente atrás de uma burrice: assim, talvez a mesma ainda possa ser alcançada. Para falar numa comparação: eu mando um pote de confeites para me livrar de uma história azeda... Basta que me façam algo de mau, que eu vou à "desforra" por causa disso, isso é certo: em pouco tempo encontro uma oportunidade de expressar meu agradecimento ao "malfeitor" (inclusive agradecendo-lhe o mal-feito) – ou de pedir algo a ele, o que pode ser mais cortês do que dar alguma coisa... A carta mais grosseira, ainda é mais bondosa, mais honesta do que o silêncio. Àqueles que silenciam quase sempre lhes falta algo em fineza e polidez de coração; silenciar é uma falta objeção; engolir sapos faz, irremediavelmente, um mau caráter – e inclusive estraga o estômago... Todos aqueles que silenciam são dispépticos. – Vede bem, eu não pretendo ver a grosseria sendo desprezada, ela é, de longe, a forma mais humana da objeção e, em meio à suavização moderna, uma de nossas maiores virtudes. Se a gente é rico o suficiente, é até mesmo uma ventura não ter razão. Um deus, que viesse à terra, por certo não haveria de fazer nada a não ser injustiças – tomar não o castigo, mas sim a culpa sobre as costas, isso é que seria divino.
 
 
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Ecce Homo: de como a gente se torna o que a gente é. Porto Alegre: L&PM, 2002. 208 p. 17 cm

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