PAULO ROBERTO PIRES
"LIVRO É UM produto como outro qualquer." Categórica e vazia, a frase é um mantra do mercado editorial globalizado. É repetida sempre que, num grande grupo editorial, há controvérsia sobre a publicação de determinado título.
Ela parte, em geral, de alguém que foi parar no meio editorial por contingência e destina-se, sempre, a um outro que ali faz carreira. O executivo transitório, que pode se ocupar de petróleo, sardinhas ou mariola, adverte o editor: não reivindique diferença e distinção para o que você faz, o trabalho intelectual é secundário no nosso negócio, que é vender livros.
Se à distância a situação soa esquemática como uma peça didática de Brecht, de perto ela é de um brutal realismo. Nesta semana, aliás, o mantra será repetido em várias línguas com o início da temporada anual de migração de editores. O destino, como em todo mês de outubro das últimas seis décadas, é Frankfurt, onde a maior e mais antiga feira de livros do mundo abre, nesta quarta-feira, como um sismógrafo das transformações do mercado.
CORPORAÇÃO Antes que o leitor se pergunte o que tem a ver com as agruras de uma corporação, é bom lembrar que o que acontece com esses profissionais acaba mexendo com sua cabeça e com a de seus filhos. Ou melhor, pode determinar que vossas cabeças sejam mexidas apenas pela pacífica mesmice das "tendências".
É desse mundo que nasce "O Dinheiro e as Palavras" [Bei, trad. Celso Mauro Paciornik, 152 págs., R$ 39] -e é com esse mundo que ajuda a fazer um nexo crítico. É dos títulos mais destacados de uma voga recente, a de livros que pensam, de dentro, os rumos da profissão e do que se publica no mundo. O autor, André Schiffrin, 76, desafina a tradição das "memórias de editor", em geral glosas dos próprios êxitos, e deita num divã público ao qual, inevitavelmente, acaba arrastando seus pares.
Não lhe falta pedigree nem conhecimento de causa. Seu pai, Jacques Schiffrin, criou a Bibliothèque de la Pléiade, coleção que na França é um santuário de clássicos, e, ao emigrar para os EUA durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45), fundou a Pantheon Books. Foi lá que André fez carreira e de lá saiu, depois de 30 anos na direção, quando viu o catálogo, formado em toda uma vida, desfigurar-se em sucessivas trocas de comando acionário.
Era o início de uma era de fusões que modificaria para sempre a paisagem da edição e da qual "O Negócio dos Livros" (Casa da Palavra, 2006), de 2000, o primeiro dos ensaios de Schiffrin sobre o tema, ainda é o testemunho mais eloquente. Publicado em mais de 25 países, na maioria deles como "A Edição sem Editores", o provocativo título francês, o livro seria seguido por "O Controle da Palavra" (2005), inédito no Brasil, e pelo atual "O Dinheiro e as Palavras" (2010).
Se no livro de estreia o tom era de denúncia, neste prevalece um estudado voluntarismo. Schiffrin pretende apontar caminhos para a sobrevivência de editores como ele, hoje guiado mais pelo interesse cultural e intelectual do que pelo lucro puro e simples. Em 1990, criou a New Press, casa sem fins lucrativos respaldada por fundações privadas e por quem se disponha a doar pelo menos US$ 250.
Editar livros hoje, defende Schiffrin, é atividade essencialmente parecida com o que era no século 19: no fundo das histórias e cifras de vampiros virginais, anjos apaixonados ou labradores amorosos está o trabalho artesanal de escritores, editores e artistas gráficos. A mudança crucial acontece, lembra ele, quando o ramo deixa de ser visto como ofício para se transformar em mais um negócio "de mídia" -com investidores à espera de lucros pelo menos três vezes maiores do que o padrão.
"As Palavras e o Dinheiro" arrisca análises sobre cinema e imprensa que, diga-se, não trazem novidades, mas servem para contextualizar o exame, aí sim certeiro, da indústria editorial. Do momento em que o livro passa a ser um produto "como outro qualquer".
ESPECULAÇÃO O diabo é que, no cassino da especulação, descobre-se logo que vender livros não dá tanto dinheiro assim -mas vender editoras pode ser um bom negócio. Mais do que isso, um jogo pesadíssimo, em que grupos multinacionais como o espanhol Planeta (onde trabalhei entre 2002 e 2004, na implantação de sua operação no Brasil) ou o alemão Bertelsmann, dois exemplos citados à larga, negociam casas editoriais como qualquer outro ativo.
Com a necessidade de lucros superdimensionados, toma-se por precisa a inexatíssima ciência da edição. A corrida maluca pelo best-seller, pelo próximo "big book", gera um quadro que Schiffrin descreve com crueldade: "As editoras progrediram do infanticídio, negligenciando os livros novos que não mostravam promessa de vendas, para o aborto, cancelando contratos existentes de livros que já não eram julgados suficientemente dignos. O objetivo agora é a contracepção, impedindo esses títulos até de entrarem no processo".
FRANÇA X EUA Criado e dividindo-se até hoje entre França e EUA, como dá conta sua ótima autobiografia, "A Political Education" (2007), Schiffrin tende a idealizar esses dois polos como representativos de visões de mundo. De um lado, o mercado supostamente autorregulado, fonte de todos os males e panaceia do capitalismo americano; de outro, as medidas protecionistas que na Europa protege a "exceção cultural", expressão que a França criou para desvincular a produção cultural da obrigatoriedade do lucro.
A ele encanta "o exemplo norueguês", conjunto de práticas governamentais que, das salas de cinema aos editores, garante a sobrevida de produtos que, definitivamente, não são como outros quaisquer. Mas o panorama é mais complexo, com o mercado francês engessado pelos conglomerados de mídia e o americano vendo aparecer interessantes casas de pequeno porte correndo por fora, com margens de lucro mais apertadas e catálogos mais diversos.
"O Dinheiro e as Palavras" considera pouco as saídas que o mundo digital pode trazer, e aí está uma de suas fragilidades -mas ele promete um novo ensaio sobre o tema (veja entrevista abaixo).
Mas e o Brasil nisso tudo? Sofre, é claro, as instabilidades de seu maior fornecedor de títulos, os EUA -mercado que nos dois últimos anos tremeu nas bases e parece recuperar-se mais devagar do que se esperava. Adiantamentos e tiragens superlativos deram lugar a movimentos discretos e a certa tranquilidade, se comparada aos acelerados (e milionários) leilões de direitos autorais.
THE END Em setembro de 2009, uma semana antes da quebradeira de bancos, o título de uma reportagem de Boris Kachka sobre o mercado americano vaticinava: "The End". No subtítulo, o resumo sombrio do que se seguia em 15 páginas da revista "New York": "O negócio do livro tal como o conhecemos nunca mais será o mesmo. Com estagnação das vendas, cabeças de CEOs rolando, a dança das cadeiras dos grandes autores e a Amazon despontando como o novo bicho-papão, o meio editorial terá que olhar para seu futuro fora do mundo corporativo".
Dois anos e um apocalipse depois, sobreviventes da crise começam a dar sinais vitais a um estímulo que atende pelo nome de "The Art of Fielding", de Chad Harbach. A imprensa, devidamente lubrificada por uma ofensiva de divulgação, trompeteia suas virtudes literárias e destaca recomendações entusiasmadas de autores tão diversos quanto Jonathan Franzen e James Patterson -endossos fundamentais, diga-se, para um estreante.
A despeito da carreira que possa fazer, o romance de 538 páginas que chegou às livrarias americanas no início de setembro tem um sentido especial para o mercado: os direitos foram arrematados pela Little, Brown por US$ 665 mil, num leilão típico do tempo das vacas gordas; a tiragem inicial, porém, foi de 30 mil exemplares, modesta e adequada à austeridade da nova era, em que o livro eletrônico começa a dizer a que veio -os e-books representaram um terço das quase um milhão de cópias vendidas de "Liberdade", de Franzen.
MAKING OF Ainda mais sintomático é que os bastidores do livro tenham virado o e-book "How a Book is Born - The Making of 'The Art of Fielding'" [como um livro nasceu - o "making of" de 'The Art of Fielding'"], disponível no Kindle por US$ 3,99. Keith Gessen, o autor, também é escritor e amigo de Harbach, o que lhe valeu esporadas da imprensa por uma suposta benevolência com seu camarada. Mas não conheço "making of" mais detalhado de um processo de edição hoje, concebido como "colaboração", eufemismo para uma verdadeira operação de guerra.
Harbach, que é fundador da revista "n+1", bíblia do típico intelectual do Brooklyn, trabalhou (sozinho) no livro por dez anos. Dava os retoques finais num texto que parecia interminável quando tudo apontava para o fim do mundo: no seu círculo de amigos, adiantamentos variaram entre US$ 750 mil e US$ 7 mil, refletindo a histeria e o pessimismo do mercado. Em tudo e por tudo, parecia estar no lugar errado, na hora errada.
"The Art of Fielding" foi recusado por diversos agentes -nos EUA, um escritor ou candidato a escritor não vai nem ao Starbuck's da esquina sem agente. Chris Parris-Lamb, jovem e experiente na profissão, gostou do original de Harbach (ou do que conseguiu ler: ele recebe cerca de 70 propostas por semana) e decidiu representá-lo.
O que se seguiu foi o típico conto de fadas do "publishing": bem estimulados, importantes editores passaram a disputar o romance que envolve beisebol, meditações sobre sucesso e fracasso e a triunfal saída do armário de um cinquentão. Parris-Lamb escolheu Michael Pietsch, que pagou US$ 85 mil a menos que seu principal concorrente. Tinha no bolso bem mais do que dinheiro: foi ele quem editou a última sensação da literatura americana, o chatinho David Foster Wallace.
Seguem-se operações inacreditáveis de marketing e relações públicas: foram enviadas a blogueiros, jornalistas e a qualquer um que pudesse falar sobre o livro 5.000 provas de divulgação -tiragem maior do que a de muitos dos livros literários no Brasil. O esforço inclui ainda as inevitáveis convenções com os livreiros, que saíram encantados com "The Art of Fielding".
RESSACA O caso é interessante porque, na ressaca da crise, mostra que algo pode ter mudado. O que decidiu o leilão foi o capital simbólico do editor, exatamente como acontecia em eras pré-corporativas. A tiragem modesta e a ênfase na divulgação fora da mídia tradicional também indicam que a complexidade desse "produto como outro qualquer" volta a se fazer presente.
Até o fechamento desta edição, "The Art of Fielding" figurava em modesto nono lugar na lista de mais vendidos no "New York Times". Na Amazon, ocupa a 42ª posição, atrás de Rick Riordan, primeiríssimo, e de Paulo Coelho, em 32º com "The Aleph". No Brasil, o livro sai no primeiro semestre de 2012 pela Intrínseca, editora de Riordan.
"O êxito de um excelente livro depende, no momento de edição, de uma infinidade de circunstâncias lógicas ou estranhas que toda a sagacidade do lucro não saberia prever", analisa um observador insuspeito, Denis Diderot. "Um erro que vejo ser cometido sem cessar por quem se deixa enganar por máximas genéricas", diz ele mais à frente, "é o de aplicar os princípios das manufaturas de tecidos à edição de livros."
Pode-se, pela mitificação, atribuir ao filósofo e editor uma espécie de clarividência, já que sua "Carta sobre o Comércio do Livro", da qual cito os trechos acima, foi endereçada a um magistrado francês em 1763. Mais realista e incômoda é a hipótese de que dedicava-se a pensar as peculiaridades de um produto então desconhecido, mas que, definitivamente, não era como outro qualquer.
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