Um livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive. (Padre Antônio Vieira)

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

GLEIK, James. A informação

GLEIK, James. A informação: uma história, uma teoria, uma enxurrada. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.


O autor compara a palavra informação com a palavra energia, em que no sec. XIX foi trazida da filosofia para a matemática, conferindo à energia seu lugar fundamental na visão que os físicos têm da natureza. O mesmo ocorreu com a informação em que um ritual de purificação se tornou necessário. 16

A economia está se reorganizando nos moldes de uma ciência da informação, agora que o próprio dinheiro está concluindo um arco de desenvolvimento da matéria para os bits, armazenado na memória de computadores e em fitas magnéticas, e que as finanças mundiais correm pelo sistema nervoso global. Mesmo quando o dinheiro parecia ser um tesouro material, ocupando espaço nos bolsos, nos compartimentos de carga dos navios e nos cofres dos bancos, ele sempre foi informação. Moedas e notas [...] tecnologias de vida [...] curta para o registro da informação que determina quem é dono do quê. 17

Tudo aquilo que é físico tem uma origem informacional-teórica, e estamos num universo participativo. Wheeler apud 18

Todo universo passa [...] a ser visto como um computador - uma máquina cósmica de processamento de informações. 18

À medida que o papel desempenhado pela informação se expande para além dos limites da capacidade humana, ela se torna excessiva. 19

Cada novo suporte transforma a natureza do pensamento humano. No longo prazo, a História é a história da informação adquirindo consciência de si mesma. 20

Cortando o ar parado da noite sobre um rio, o bater do tambor podia chegar a uma distância de aproximadamente dez km. Transmitidas de vilarejo em vilarejo, as mensagens podiam percorrer mais de 150 km em questão de uma hora. 23

Os antigos não eram desprovidos de recursos. Os gregos usavam faróis de fogo na época da Guerra de Tróia, no séc. XII a.C. [...] uma fogueira armada no cume de uma montanha podia ser vista por postos de sentinelas a uma distância de mais de 30 km. 24

Uma escolha binária, alguma coisa ou coisa nenhuma: o sinal de fogo significava alguma coisa. [...] a transmissão desse único bit exigiu imenso planejamento, muito trabalho, vigilância atenta e lenha. 25

As pessoas tentaram bandeiras, cornetas, sinais de fumaça e troca de reflexos entre espelhos. Eles conjuraram espíritos e anjos para atender aos propósitos da comunicação- e os anjos são, por definição, mensageiros divinos. A descoberta do magnetismo parecia ser especialmente promissora [...] encarnavam poderes ocultos. 25

A ideia das agulhas sintonizadas aparecia sempre que se reuniam filósofos naturais e artistas e artistas ilusionistas. Na Itália um homem tentou vender a Galileu um método secreto para se comunicar com outra pessoa a [...] 3 mil km [...] por meio de uma certa propriedade das agulhas magnéticas. 25

Um produto do novo conhecimento da astronomia e da geografia do séc. XVII. Essa foi a primeira tentativa de estabelecer a então já mais sólida ideia da simultaneidade [...] naquela época, ninguém no mundo conseguia se comunicar tanto, nem tão rápido nem tão livremente, quanto os africanos e os seus tambores. 27

Vail e Morse se voltaram para a ideia de um alfabeto codificado, usando sinais [...] aqueles elementares sinais teriam de dar conta de todas as palavras da linguagem falada ou escrita. 28

Uma testemunha ficou impressionada com a maneira como os telegrafistas internalizavam essas habilidades. 29

John F. Carrington acabou percebendo que os batuques transmitiam não apenas informes e alertas, mas também preces, poesias e até piadas. Os percussionistas não estavam sinalizando, e sim falando: eles falavam num idioma especialmente adaptados para os tambores. 30

Para os percussionistas africanos, as mensagens tinham de ter cerca de oito vezes o comprimento de suas equivalentes faladas. 35

Em pouco tempo, surgiu uma geração de pessoas para quem o rumo da tecnologia da comunicação saltou diretamente do tambor falante para o celular, pulando os estágios intermediários. 36

Nos anos 60 e 70 Walter J. Ong declarou que a era eletrônica seria uma nova era da oralidade [...] com a palavra dita ampliada e difundida como nunca antes [...] As novas mídias pareciam ser o rádio, o telefone e a televisão. Mas estes eram apenas fracos raios de luz que despontavam no céu noturno, uma indicação da fonte de luminosidade que ainda estava além do horizonte [...] ele sem dúvida reconheceria sua qualidade transformadora: não apenas uma revitalização de formas mais antigas, mas algo inteiramente novo. Ele pode ter pressentido a descontinuidade que viria [...] poucos compreendiam melhor do que Ong a profundidade daquela descontinuidade. 38

Por ser uma tecnologia, a escrita exige premeditação e o domínio de uma certa arte. Já a linguagem não é uma tecnologia, independentemente de seu grau de desenvolvimento e de sua eficácia. Não dá para enxerga-la como algo distinto da consciência – ela é aquilo que a consciência produz [...] mais ou menos o mesmo pode ser dito a respeito da escrita – trata-se de um ato concreto – mas, quando a palavra é representada no papel ou na pedra, assume uma existência separada como artifício. Ela é o produto de ferramentas, e é ela própria uma ferramenta. E, como muitas tecnologias que se seguiram, imediatamente encontrou detratores. 39

A escrita passa a existir para possibilitar a retenção da informação ao longo do tempo e do espaço. Antes da escrita, a comunicação é temporária e local [...] o caráter temporário da palavra dita era um dado que dispensava reflexão. A fala era tão transitória que o raro fenômeno do eco, um som ouvido uma vez e então de novo, parecia ser um tipo de mágica. 41

O poder não está apenas no conhecimento, preservado e passado adiante, por mais valioso que seja, e sim na metodologia: indicações visuais codificadas, o ato da transferência, substituindo signos por coisas. E então, mais tarde, signos por signos. 41

A primeira vista, trata-se de algo insondável. Começa a fazer sentido ao ser considerado uma afirmação a respeito da linguagem e da lógica. 49

O conhecimento tem um valor e um custo de descoberta, que devem ser contabilizados e pesados. 95

Antes do telégrafo elétrico havia o telégrafo simples [...] eles eram ópticos [...] era uma torre para o envio de sinais para outras torres localizadas dentro de seu alcance visual. A tarefa consistia em desenvolver um sistema de sinais mais eficiente e flexível do que as fogueiras. 138

O Conde de Miot de Melito afirmou em suas memórias que Claude Chappe entregou entregou sua ideia ao Gabinete da Guerra sob o nome de tachygraphe (leitor ágil) e que ele, Mihot, propusera télégraphe. 138

Certos sinais eram reservados à correção de erros e ao controle: começo e fim, confirmação de recebimento, atraso, conflito [...] e falha. Outros eram usados aos pares, indicando para o operador determinadas páginas e números de linhas em livros de códigos com mais de 8000 verbetes potenciais: palavras e sílabas, bem como nomes próprios de pessoas e lugares. Tudo isso foi mantido como um segredo [...] as mensagens seria transmitidas pelo céu, a vista de todos. Chappe deu por certo que a rede telegráfica com a qual ele sonhava seria um departamento de Estado, propriedade do governo operada por funcionários públicos. Ele não a via como um instrumento de disseminação do conhecimento ou de geração de riqueza, e sim como um instrumento de poder. 140

Telégrafo significava escrita distante [...] em 1774 Georges-Louis Le Sage, de Genebra, dispôs 24 fios separados e designou a eles 24 letras [...] em 1787, um francês chamado Lomond passou um fio por todo o seu apartamento e disse ser capaz de sinalizar com letras distintas ao fazer uma esfera de metal dançar  em diferentes direções [...] em 1809, um alemão, Samuel Thomas von Sommerring criou um telégrafo de bolhas, cada jato de bolhas indicava uma única letra [...] conseguiu fazer com que a eletricidade soasse uma campainha [...] um norte-americano chamado Harrison Gray Dyer tentou enviar sinais por meio de faíscas criadas a partir do ácido nítrico que descoloria o papel de tornassol [...] então surgiram as agulhas [...] repelida pelo magnetismo. 147

Todos os aspirantes a inventores do telégrafo elétrico [...] trabalhavam com base no mesmo conjunto de ferramentas. Eles tinham fios e agulhas magnéticas. E possuíam baterias [...] não tinham luzes. Não contavam com motores. Dispunham apenas dos mecanismos que eram capazes de construir com a madeira e o latão: pinos, parafusos, rodas, molas e alavancas. E, em última análise, tinham um alvo em comum: as letras do alfabeto. 149

Peter Roget, autor de um Tratado de eletromagnetismo, bem como de um sistema de classificação verbal batizado por ele de Thesaurus. 150

Morse teve a ideia a partir da qual todo o restante fluiu. Sem saber nada a respeito de esferas metálicas, bolas e papel de tornassol, ele viu que um sinal poderia ser formado por algo mais simples, mais fundamental e menos tangível - o mais mínimo dos eventos, o fechamento e a abertura de um circuito. Não eram necessárias agulhas. A corrente elétrica fluía e era interrompida, e as interrupções poderiam ser organizadas para criar significado. 151

A relação entre o telégrafo e o jornal era simbiótica. As reações positivas ampliaram o efeito. O telégrafo, por ser uma tecnologia da informação, serviu como agente de seu próprio domínio. A expansão global do telégrafo continuou a surpreender até mesmo seus defensores. 156

Os conceitos mais elementares estavam agora atuando como consequência da comunicação instantânea entre pontos separados por grandes distâncias. Observadores culturais começaram a dizer que o telégrafo estava aniquilando o tempo e espaço [...] de fato parecia corromper ou encurtar o tempo num sentido [...] o tempo como obstáculo ou fardo para as relações humanas. [...] O mesmo ocorria com o espaço [...] antes todos os horários eram locais [...] agora o tempo podia ser local ou padrão, e essa distinção deixou perplexa a maioria das pessoas [...] quando lugares distantes foram coordenados no tempo [...] puderam [...] medir com precisão a própria longitude [...] horário certo [...] distância necessária [...] longe de aniquilar o tempo a sincronia ampliou seu domínio. A própria noção de sincronia e a consciência de que se tratava de uma ideia nova fizeram cabeças entrar em parafuso. 157

O telégrafo [...] representa uma nova era na transmissão das informações como também deu origem a toda uma nova classe de ideias, uma nova espécie de consciência. Nunca antes uma pessoa teve a consciência de saber com certeza aquilo que estava ocorrendo num determinado momento numa cidade longínqua. 157 Adam Frank apud

A história (e o fazer história) também mudou [...] levou a preservação de inúmeras minúcias relativas à vida cotidiana. Durante algum tempo [...] tentaram manter um registro de todas as mensagens. [...] um armazenamento de informações sem precedentes. 158

Andrew Winter (1863) fez uma previsão: não está distante [...] o dia em que todos poderão conversar com os demais sem ter de sair de casa. 160

Sob mais de um aspecto, usar o telégrafo significava escrever em código. O sistema Morse de pontos e traços não foi chamado inicialmente de código. Era chamado apenas de alfabeto. Alfabeto Telegráfico Morse [...] mas não se tratava de um alfabeto [...] ele não representava o som por meio de signos [...] tomou o alfabeto como ponto de partida e o incrementou, por substituição, trocando signos por novos signos. Tratava-se de um meta-alfabeto, um alfabeto de segundo grau. Esse processo – a transferência de significado de um nível simbólico a outro – já tinha um lugar na matemática. De certa forma, era a própria essência da matemática [...] passava a ser um presença constante na caixa de ferramentas do ser humano [...] por causa do telégrafo, no fim de século XIX as pessoas se [...] familiarizaram, com a ideia dos códigos [...] o movimento de um nível simbólico para outro podia ser chamado de codificação. 160

O telégrafo servia não apenas como um dispositivo, mas como um suporte – um meio, um estado intermediário. A mensagem passa por esse suporte. Além da mensagem, é preciso considerar também seu conteúdo. 162

George Boole [...] propôs que os únicos números permitidos fossem 0 e 1. Era tudo ou nada [...] até então, a lógica pertencera ao domínio da filosofia. Boole estava reivindicando sua posse em nome da matemática. 172

Três grandes ondas de comunicação elétrica formaram suas cristas em sequência: a telegrafia, a telefonia e o rádio. As pessoas começaram a ter a sensação de que era natural possuir máquinas dedicadas ao envio e ao recebimento de mensagens. 178

Aritmética binária. Bem ali, na tese de mestrado de um assistente de pesquisas, estava a essência da futura revolução dos computadores. 183

Leibnitz, Babage, Boole, todos acreditavam que a perfeição do raciocínio poderia advir da codificação perfeita do pensamento [...] com uma codificação desse tipo, as falsidades lógicas seriam denunciadas de forma instantânea.

A tão buscada linguagem universal, as característica universalis que Leibnitz quisera inventar, estivera bem ali o tempo todo, nos números [...] eram capazes de codificar todo o raciocínio. Podiam representar todas as formas de conhecimento. 193

Falta de imaginação diante de uma tecnologia radicalmente nova. O telégrafo estava aos olhos de todos, mas as lições trazidas por ele não tinham uma relação muito clara com esse novo aparelho. O telégrafo exigia alfabetização – o telefone abraçava a oralidade. Para ser enviada via telégrafo, uma mensagem tinha antes de ser escrita, codificada e transmitida por um intermediário treinado. Para usar o telefone, bastava falar. Justamente por esse motivo, parecia um brinquedo [...] não deixava registros permanentes [...] não tinha futuro [...] empresários e comerciantes o consideravam pouco sério. Se o telégrafo trabalhava com fatos e números, o telefone apelava as emoções. 198

Assim, emergem todos os tipos de previsões. Negativas e positivas, de simultaneidade e conexão global. Eu

Teoria da informação de Shannon. A informação é incerteza, surpresa, dificuldade, entropia. 227

Era necessário uma nova unidade de medida. Dígitos binários ou bits. Por ser a menor quantidade possível de informação, um bit representa a quantidade de incerteza que existe no arremesso de uma moeda. 237

Norbert Wiener [...] se preocupava muito com a compreensão dos distúrbios mentais, com as próteses mecânicas e com os deslocamentos sociais que poderia se seguir à ascensão das máquinas inteligentes [...] desvalorização do cérebro humano proporcional à desvalorização que o maquinário das fábricas tinha imposto à mão humana. 249

Von Neumann [...] ele havia desenvolvido recentemente uma teoria dos jogos [...] uma matemática da informação incompleta. 253

A unidade fundamental é um escolha binária. 262

Pc memoria, execução, controle instruções codificadas em números ou programas. Turing 263

A linguagem do estímulo e da resposta começou a dar lugar à transmissão e recepção de informação. 268

A teoria da codificação se tornou uma parte crucial da ciência da computação. 272

Do ponto de vista estatístico, tudo tende a máxima entropia. 283

Máquina de movimento perpétuo, perpetuum mobile 287

Para o teórico da informação, a entropia é uma medida da incerteza em relação a uma mensagem. 289

A nova biologia molecular começou a examinar (1940) a transmissão e o armazenamento de informação. 298 pensar além dos fluxos de energia e matéria e focar no fluxo da informação.

Os genes [...] não são concorrentes [...] seu sucesso ou fracasso ocorre por meio da interação. 315

As notas e o tempo marcados no papel não são a música. A música não é uma série de ondas de pressão ressoando pelo ar; nem os sulcos impressos em vinil nem as marcas queimadas em CDs; [...] A música é a informação. Da mesma forma [...] os genes em si são feitos de bits. 318

Fred Dretske (1981) no princípio havia a informação. O verbo veio depois. 332

Temos consciência de muitas espécies de informação. Nomeamos seus tipos sardonicamente, como se quiséssemos assegurar de que os compreendemos. lendas urbanas ou mentiras deslavadas. Nós os mantemos vivos em torres de servidores com ar-condicionado. Mas não podemos controla-los. Quando um jingle gruda em nosso ouvido, ou uma nova tendência vira o mundo da moda de cabeça para baixo, ou uma farsa domina o debate em escala mundial durante meses ou então desaparece com a mesma rapidez com que surgiu, quem é o senhor e quem é o escravo? 332

Rolf Landauer a informação é física. Exige objetos físicos e obedece as leis da física. 370

Não se deve chorar por descanso, assim como não se deve fazê-lo por uma fivela perdida [...] Deixamos para trás conforme reunimos novidades, como viajantes que precisam levar tudo nos braços, e aquilo que deixamos cair será apanhado por aqueles que vêm atrás. A procissão é muito longa e a vida, muito curta. Morremos na marcha. Mas nada existe fora da marcha e, por isso, nada pode ser perdido e afastado dela. As peças faltantes de Sófocles serão recuperadas pedaço por pedaço, ou serão escritas novamente em outro idioma. Sptimus. 388

O texto codifica números, e os números apontam para locais no ciberespaço, dividindo-se em redes, sub-redes e dispositivos. 400

Revolução da comunicação dura séculos e ainda está em marcha. 410

Depois que surgiu a teoria da informação, logo se seguiram a sobrecarga de informação, saturação da informação, ansiedade de informação e fadiga de informação [...] reconhecida pela OED em 2009 como síndrome atual. 412

Somos todos usuários da Biblioteca de Babel agora, e somos também os Bibliotecários. Oscilamos entre o êxtase e a perplexidade. 435

A Biblioteca perdurará - ela é o universo. Quanto a nós, nem tudo foi escrito, não estamos nos convertendo em fantasmas. Caminhamos pelos corredores, vasculhando as prateleiras e reorganizando-as, procurando linhas de conhecimento em meio a léguas de cacofonia e incoerência, lendo a história do passado e do futuro, reunindo nossos pensamentos e os pensamentos dos outros e, de vez em quando, olhando espelhos, nos quais podemos reconhecer criaturas da informação. 435


segunda-feira, 9 de outubro de 2017

ler para no morir

Foi abandonado, o mundo já não é maravilhoso. Como em um jet lag permanente, não consegue se conectar com a realidade que o envolve. Freud dizia que as palavras e a magia foram no princípio a mesma coisa. É por isso que continuamos procurando refúgio nos livros quando a vida nos prega uma brincadeira estúpida? Você, passageiro em momentos ruins, abre um romance e em suas páginas encontra algo parecido a um bote salva-vidas, um alívio balsâmico ao desassossego.

Os leitores vorazes sabem bem que as bibliotecas e as livrarias são uma panaceia eficaz à alma, como já se afirmava na Antiguidade. A ficção e a poesia, afirma a romancista Jeanette Winterson, são remédios que curam a ruptura que a realidade provoca em nossa imaginação. Como diz a máxima horaciana dulce et utile, nos ensinam prazerosamente. O eco das palavras, seu ritmo, e as imagens com uma grande carga emocional inundam e ativam os recônditos de nossa consciência. Quando lemos um texto literário inteligente e sedutor, o mundo se torna mais habitável.

Entre os benefícios de se ler ficção, o primeiro, por mais óbvio que pareça, é chegar a nos conhecer melhor. Proust, a quem hoje poucos negarão sua aptidão à ciência cognitiva, afirmava que cada leitor, quando lê, é o próprio leitor de si mesmo. Acrescentava que a obra do escritor não é mais do que uma espécie de instrumento ótico que este oferece ao outro para permitir-lhe discernir o que, sem esse livro, não seria capaz de ver por si mesmo. Entrar no universo dos romances é viver múltiplas vidas. Com um livro nas mãos se abre diante de nós um terreno para a experimentação de inúmeras circunstâncias. A biblioterapia é possível graças ao choque de identificação que se produz no leitor quando se vê refletido na história. Sentimos empatia por outras pessoas, outras formas de pensar. A leitura, além disso, é uma aventura intelectual trepidante. Para o Nobel de Literatura André Gide, ler um escritor não é só ter uma ideia do que ele diz, mas viajar com ele.

Ler nos coloca em um espaço intermediário: ao mesmo tempo em que deixamos em suspenso nosso eu, nos conecta com nossa essência mais íntima, um bem valioso para se manter certo equilíbrio nesses tempos de distração. A leitura, dizia María Zambrano, nos brinda com um silêncio que é um antídoto ao barulho que nos rodeia. Ela nos procura um estado prazeroso semelhante ao da meditação e nos traz os mesmos benefícios que o relaxamento profundo. Ao abrir um livro conquistamos novas perspectivas, pois a ficção divide com a vida sua essência ambígua e multifacetada. Uma vez que só podemos ler um número limitado de títulos, o que procuramos? Obras que reafirmem nossas crenças, ou façam com que essas balancem? Para Kafka era muito claro, só deveríamos nos adentrar nas obras que incomodam: "Um livro precisa ser um machado que abre um buraco no mar gelado de nosso interior".

FONTE: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/09/cultura/1507563876_434538.html?id_externo_rsoc=FB_BR_CM

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Luiz Carlos Cancellier de Olivo, o Cao, está morto.


Nas estatísticas oficiais a morte de Cao será contada como suicídio.

Mas ninguém se iluda. Mãos visíveis algumas, que podem ser identificadas sem que seja necessário levar ninguém à prisão, e mãos invisíveis, muitas mãos invisíveis, o empurraram das alturas, de modo que os seus ossos se quebrassem, o sangue jorrasse na hemorragia incontrolável, e a vida se extinguisse rapidamente no choque terrível. Instantes depois do baque surdo, o coração cheio de bondade, de tolerância, de respeito ao próximo, parou de bater.

Que mãos eram essas? Mãos de quem talvez saiba o que é vingança, mas sabe pouco do que seja justiça. Mãos de quem só têm a si mesmo como honestos e virtuosos, senhores do bem e do mal, da reputação de quem mal conhecem e que não têm curiosidade de conhecer. Mãos de quem, tendo o poder de prender, ignoram a gravidade do delito suposto, e para quem tanto faz ter o cidadão ficha limpa ou antecedentes criminais. Mãos de quem, sendo ciosos da imagem de suas respectivas instituições, desprezam, entretanto, a imagem das demais, como deuses de um alcorão, uma bíblia fundamentalista.

Mãos de quem, tendo o poder de prender sem flagrante, e de começar uma investigação pela coerção, constrangimento e prisão dos suspeitos, não chegam a perceber que o método rústico revela a incapacidade de cumprir seus deveres e obrigações com inteligência, método e moderação.

Mãos de quem, ciosos de seu poder e autoridade, ao invés de exercê-los com critério, partindo do pressuposto inalienável de que o cidadão pode ser culpado, pode ter só parte de culpa, ou nenhuma culpa, pensando que seu juízo e sua intuição são infalíveis, só têm olhos para as evidências que confirmem as suas suspeitas.

Mãos de quem, ainda ontem frequentavam os bancos da faculdade, mas para quem a presunção da inocência - pináculo do estado de Direito, pilar da democracia, conquista da civilização - é um inútil ornamento da lei.

Mãos de quem não abrigam em seus corações nenhum sinal de bondade, de compreensão pelo outro, e em suas cabeças nenhum raciocínio a respeito da proporção dos seus atos, nenhuma projeção dos seus efeitos e suas consequências, para o ser humano, a instituição, a comunidade.

Mãos de quem em nada parecem saber que a prisão é, em toda circunstância, a não ser nas ditaduras, desonrosa. Em nada parecem saber que abate, constrange e humilha, aprisionar, examinar alguém em corpo nu, vesti-lo em roupa de prisioneiro, e que tudo isso adentra pelo terreno da barbárie, ainda mais quando se faz sem flagrante, sem a sentença, antes mesmo de ser réu.

Mãos de quem se aproveitam de uma época inglória e insana, de uma sociedade exaurida pelos escândalos públicos, e que em boa parte, têm espuma e sangue nos lábios, e para quem tudo é joio, e trigo só eles são, tendo na ponta da língua os chavões da época, de condenação geral aos bandidos de verdade, mas levando juntos os que passaram perto e os inocentes que têm o azar de atravessar o caminho.

Um pouco de humildade, um pouco de humanidade não lhes faria mal. Não conheço nenhum desses agentes da lei, e não desejo conhecê-los, porque tenho medo deles. Que autoridades são essas que ao invés de proteger nos causam medo e terror? Quem são eles, assim destituídos de humanidade e razão? É preciso agir com a mão assim pesada, com tal crueldade, com tal virulência e desumanidade?

Não se passa o país a limpo assim, senhores e senhoras. Digo de novo o que já escrevi: os senhores, as senhoras, estão jogando o bebê fora junto com a água do banho.

Mãos não só de autoridades, mas de uma imprensa que primeiro atira e só depois pergunta quem vem lá, quando e se pergunta. Uma imprensa que toma como verdadeira, em princípio, a palavra da autoridade, não mediada, não contextualiza. De blogueiros, ativistas e pessoas "comuns" que, raivosos, expelem argumentos chulos, pensamentos prontos, clichês preconceituosos, manifestações de atraso, ignorância, e ódio, muito ódio nas redes sociais Mãos de quem confunde moral com moralismo de baixo custo, que a todos rotula, por método, costume e um certo prazer sádico.

Cancellier almoçou lá em casa há menos de uma semana. Com o filho Mikhail, Ricardo Baratieri, Arlete e Nara Micaela. Ao final, nós estávamos reconfortados. Cancellier nos pareceu lúcido, fazendo um esforço genuíno para compreender que tinha sido vítima de uma dessas armadilhas do destino, uma coincidência infeliz. Ele parecia razoavelmente recuperado do golpe sofrido.

Um turbilhão que tudo arrasta, um vendaval que se solta, uma cilada da vida: assim pareceu Cancellier encarar o seu drama pessoal. Ele aparentava uma calma estranha, uma misteriosa resignação. Quando soube de sua morte ontem, compreendi imediatamente: ele já havia engendrado o seu destino, fingiu serenidade, para que ninguém quisesse interromper o plano que já tinha traçado. Alguém já disse que não há pior vergonha do que a de não ter feito o que lhe imputam. Muito pior que a desonra, é o sentimento de quem não a merece.

Podem ficar tranquilos todos e cada um dos mais de cem agentes públicos e autoridades do Estado que, de alguma forma contribuíram para desenlace trágico, dando ou cumprindo ordens, assinando as portarias, os despachos, cumprindo as frias formalidades da "lei", que este homem singular, Cancellier, que não cultivou em vida a raiva, a mágoa, o ressentimento, também não os levará para a eternidade.

Conduziram ao camburão, abriram as portas do cárcere um homem que não queria mal a ninguém, que não fazia mal a ninguém. Um homem de coração generoso e aberto, um democrata na teoria e mais ainda na prática, um homem de diálogo e conciliação, um campeão da harmonia e da paz. Ah, Cancellier, como você, querido amigo e querido irmão fará falta, ainda mais nesta terra brasileira nunca tão dilacerada pela dissensão e a intolerância, apequenada nos conflitos políticos de uma República abastardada, no facilitário do ódio, na insensatez arrogante de muitas das suas elites.

Como fará falta sua voz calma e pacificadora, em busca da palavra certa em favor do diálogo e do entendimento, na instituição que você respeitou, protegeu e amou mais do que qualquer outro, a quem você emprestou o seu talento e capacidade de trabalho, esta Universidade Federal de Santa Catarina, o palco involuntário de uma tragédia que marcará para sempre e indelevelmente a sua história.

Abraço caloroso, Mikhail, Júlio, Acioly, Cristiane, familiares, amigos. Choremos o passamento de Cao Cancellier e sigamos o seu exemplo, de uma vida dedicada ao bem, à justiça, à liberdade e à paz entre os homens. Descanse Cao em algum lugar, na dimensão possível. E rezemos para que esta tragédia que nos causa tamanho torpor, tal comoção, que nos fere tão fundo na alma, de alguma maneira seja uma lição que nos afaste da barbárie, nos contagie com um pouco de fraterna humanidade, nos dê força para enfrentar esta provação.

Abraço sentido e caloroso, reitora Alacoque, pró-reitores, diretores, servidores e alunos. Universidade, se bem interpreto o pensamento do amigo e irmão que se foi de forma tão despropositada, é lugar onde se privilegia o conhecimento e o saber, a extensão e pesquisa. É o lugar dos crentes e dos ateus, dos socialistas e dos liberais, da direita e da esquerda, dos negros, indígenas e brancos, dos pobres e dos ricos, das mulheres e dos homens, dos héteros e dos homossexuais. Aqui se encontram, convivem e aprendem para a vida e a cidadania, todas as tribos da comunidade nacional e planetária.

Todos os que se acham superiores moralmente, politicamente, esqueçam. Somos todos iguais ou parecidos em defeitos e qualidades. Experimentem, como o Cao fazia o tempo todo, calçar de vez em quando as sandálias da humildade. A Universidade não é o lugar apropriado para a guerrilha política, para o "nós" contra "eles". Aqui podem e até devem se bater as facções, as narrativas históricas, mas ninguém é dono do futuro e só uma busca é possível e legítima: a de uma sociedade próspera, justa, livre e fraterna. Universidade rima com verdade e liberdade.

Nelson Wedekin"

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