RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Tradução de  Pedro Sussekind. Porto Alegre: L&PM, 2009. 96 p. ISBN 978852541566-0
     
    Uma obra de arte é boa  quando surge de uma necessidade. É no modo como ela se origina que se encontra  seu valor, não há nenhum outro critério.
    Obras e arte são de uma  solidão infinita, e nada pode passar tão longe de alcançá-las quanto a crítica.  Apenas o amor pode compreendê-las, conservá-las e ser justo em relação a elas. 
    Ser artista significa:  não calcular nem contar; amadurecer como uma árvore que não apressa a sua seiva  e permanece confiante durante as tempestades de primavera, sem o temor de que o  verão não possa vir depois. Ele vem apesar de tudo. Mas só chega para os  pacientes, para os que estão ali como se a eternidade se encontrasse diante  deles, com toda a amplidão e serenidade, sem preocupação alguma. 
    E é disto que se trata,  de viver tudo. Viva agora as perguntas. Talvez passe, gradativamente, em um  belo dia, sem perceber, a viver as respostas [...] quase tudo o que é sério é  difícil, e tudo é sério. 
    Os homens converteram  até mesmo o ato de comer em uma outra coisa: carência por um lado e excesso por  outro obscureceram a clareza dessa necessidade; e igualmente obscurecidas se  tornaram todas as necessidades profundas e simples nas quais a vida se renova. 
    A ideia de ser um  criador, de gerar, de formar,  não é nada  sem a sua contínua e grandiosa confirmação e realização no mundo, nada sem o  consenso mil vezes repetido por parte das coisas e dos animais. E só por isso o  seu gozo é tão indescritivelmente belo e rico, porque é feito das recordações  herdadas da geração e da gestação de milhões de seres. Em um pensamento criador  revivem milhares de noites de amor esquecidas que o preenchem com altivez e  elevação. Assim, aqueles que se juntam durante as noites e se entrelaçam em uma  volúpia agitada fazem um trabalho sério, reúnem doçuras, profundidade e força  para a canção de algum poeta vindouro que surgirá para expressar deleites  indizíveis. Eles convocam o futuro; mesmo que errem e se abracem cegamente, o  futuro virá apesar de tudo, um novo homem se elevará, e a partir do acaso que  parece se realizar aqui desponta a lei pela qual um germe forte e resistente se  lança em direção ao óvulo, que vem receptivo ao seu encontro. Não se deixe  enganar pelo que é superficial; nas profundezas tudo se torna lei. Os que vivem  mal e de modo falso o segredo (e são muitos) o perdem só para si mesmos, e no  entanto o transmitem como uma carta fechada, sem saber.
     
     
    Mas tudo o que talvez  um dia ainda seja possível para muitos o solitário pode, já agora, preparar e  construir com suas mãos, que erram menos. [...] ame a sua solidão e suporte a  dor que ela lhe causa com belos lamentos. Pois os que são próximos [...] estão  distantes [...] se o próximo está longe, então o que é distante vaga entre as  estrelas, na imensidão. Alegre-se com o seu crescimento, para o qual não pode  levar ninguém junto, e seja bondoso com aqueles que ficam para trás, seja  seguro e tranquilo diante deles, sem perturbá-los com as suas dúvidas nem  assustá-los com uma confiança ou alegria que eles não poderiam compreender.
    E um dia, ao  percebermos que suas ocupações são mesquinhas, que suas profissões são  enrijecidas e não estão mais ligadas à vida, por que não olhar para eles como  uma criança observa algo de estranho, a partir da profundeza do próprio mundo,  da amplitude da própria solidão, que é ela mesma um trabalho, um cargo e uma  profissão? Por que se desejaria trocar o sábio não-entendimento de uma criança  pela atitude defensiva e pelo desprezo, uma vez que o não-entendimento é estar  sozinho, mas a atitude defensiva e o desprezo são participações naquilo de que,  com esses recursos, as pessoas querem se afastar? Pense, meu caro, no mundo que  o senhor leva dentro de si, então dê a esse pensamento o nome que quiser [...]  apenas preste atenção no que surge a partir de dentro e eleve-o acima de tudo o  que [...] percebe em torno. Se um acontecimento mais íntimo é digno de todo o  seu amor, é nesse pensamento que [...] deve trabalhar de algum modo, sem perder  muito tempo nem muito esforço para esclarecer sua posição em relação aos outros  homens. Quem é que lhe diz que [...] tem uma posição?
    Amar também é bom: pois  o amor é difícil. Ter amor, de uma pessoa por outra, talvez seja a coisa mais  difícil que nos foi dada, a mais extrema, a derradeira prova e provação, o  trabalho para o qual qualquer outro trabalho é apenas uma preparação. Por isso  as pessoas jovens, iniciantes em tudo ainda não podem amar: precisam aprender o  amor. [...] Mas o tempo de aprendizado é sempre um longo período de exclusão,  de modo que o amor é por muito tempo, ao longo da vida, solidão, isolamento  intenso e profundo para quem ama. O amor constitui uma oportunidade [...] para  o indivíduo [...] tornar-se um mundo para si mesmo.
    O que a vida deve fazer  desse acúmulo de equívocos a que eles chamam de união e gostariam de chamar de  sua felicidade? [...] Então cada um se perde por causa do outro e perde o outro  e muitos outros quem ainda desejariam surgir. Perdem-se as vastidões e as  possibilidades, troca-se a aproximação e a fuga de coisas quietas, cheias de  pressentimentos, por um desespero infrutífero do qual nada mais pode resultar.  [....] inclinada a considerar a vida amorosa um prazer, por isso tinha de  torna-la fácil, barata, inofensiva e segura, como são os prazeres públicos. De  fato muitos jovens que amam de modo falso, ou seja, simplesmente entregando-se,  sem preservar a solidão (a maioria não passará nunca disso), sentem a opressão  de um erro e querem, de uma maneira própria e pessoal, tornar vivida e fértil a  situação em que se precipitaram [...] Como é que eles poderia encontrar uma  saída em si mesmos, do fundo de sua solidão já desperdiçada, eles que se  atiraram, que não se delimitam nem se diferenciam, e que portanto não possuem  nada de próprio?
    A menina e a mulher, em  seu desdobramento novo e próprio, serão apenas de passagem imitadoras dos  vícios e das virtudes masculinos e repetidoras das profissões dos homens.  Depois das incertezas dessas transições, o que se revelará é que as mulheres só  passaram por todos esses sucessivos disfarces [...] para purificar sua própria  essência das influências deformadoras do outro sexo. As mulheres, nas quais a  vida se instala e habita de modo mais imediato, frutífero e cheio de confiança,  no fundo precisam ter se tornado seres humanos mais maduros, mais humanos do  que o homem, pois ele não passa de um ser leviano, que é mergulhado sob a  superfície da vida pelo peso de um fruto carnal, que menospreza, arrogante e  apressado, aquilo que pensa amar. Essa humanidade da mulher, realizada em meio  a dores e humilhações, virá à tona quando ela tiver se livrado das convenções  do exclusivamente feminino nas transformações de sua situação exterior. E os  homens que hoje não a sentem vir ainda, serão surpreendidos e derrotados por  essa humanidade. [...] esse amor mais humano (que se realizará de modo  infinitamente delicado e discreto, certo e claro, em laços atados e desatados)  [...] na delimitação e saudação de duas solidões. 
    É necessário [...] que  não experimentemos nada de estranho, mas apenas aquilo que nos pertence há  muito tempo [...] vem de dentro dos homens aquilo que damos nome e destino. 
    Voltando ao assunto da  solidão, fica cada vez mais claro que no fundo ela não é nada que se possa  escolher ou abandonar. Somos solitários. É possível iludir-se a esse respeito e  agir como se não fôssemos. É tudo. Muito melhor, porém, é perceber que somos  solitários, e partir exatamente daí.
    Mas apenas quem está  pronto para tudo, quem não exclui nada, nem mesmo o mais enigmático, viverá a  relação com uma outra pessoa como algo vivo e irá até o fundo de sua própria  existência. Pois se pensamos a existência do indivíduo como um cômodo [...]  revela-se que a maioria de nós só chega a conhecer um canto do seu quarto, um  local perto da janela, uma faixa na qual se anda de lá para cá. [...] E no  entanto nós não somos prisioneiros. Não há armadilhas e emboscadas armadas em  torno de nós, nada que nos devesse angustiar ou perturbar. Estamos lançados na  vida como no elemento ao qual correspondemos melhor, além disso nos tornamos,  por meio de uma adaptação de milhares de anos, tão semelhantes a essa vida que,  por um mimetismo afortunado, se nos mantivermos quietos, quase não nos  diferenciaremos daquilo que nos cerca. Não temos motivo algum para desconfiar  de nosso mundo, pois ele não está contra nós. Caso possua terrores, são nossos  terrores [...] caso existam perigos, então precisamos aprender a amá-los [...]  o que agora nos parece ser muito estranho   se tornará o que há de mais familiar e confiável.
    Acredite em mim: a vida  tem razão, em todos os casos.