Um livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive. (Padre Antônio Vieira)

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Biblioteca do Futuro

China inaugura a biblioteca mais espetacular do mundo com 1,2 milhões de livros e o interior é de cortar a respiração

Ninguém gosta de ser observado enquanto lê um livro, mas estamos dispostos a abrir uma excepção se isso significar visitar essa incrível biblioteca na China, porque, como você pode ver abaixo, a incrível estrutura tem um gigante auditório esférico no meio que parece um olho gigante.

Localizada no distrito cultural de Binhai, em Tianjin, a biblioteca de cinco andares, projetada pela empresa de design holandesa MVRDV, em colaboração com o Instituto de Planejamento e Design Urbano de Tianjin (TUPDI) e desde então denominada "O olho de Binhai", cobre 34 mil metros quadrados e pode armazenar até 1,2 milhões de livros. Com a sua construção demorando apenas 3 anos, a biblioteca possui uma área de leitura no piso térreo, salas de estar nas secções do meio e escritórios, espaços de reunião e salas de informática / áudio no topo.

Nós não temos certeza se daria para estudar lá – nós estaríamos muito ocupados maravilhando-nos com a incrível arquitetura!

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

SENNETT, Richard. A cultura do novo capitalismo.

SENNETT, Richard. A cultura do novo capitalismo. 2 ed. Rio de Janeiro: Record, 2008. 189 p.

 

cultura [...] quais os valores e práticas capazes de manter as pessoas unidas no momento em que as instituições em que vivem se fragmentam. 13

prosperar em condições sociais instáveis [...] três desafios: tempo [...] talento [...] permitir que o passado fique para trás. 13-14

o mais fundamental dos problemas culturais: boa parte da realidade social moerna é ilegível para as pessoas. 20

Passar o tempo numa organização de funções preestabelecidas fixas é como rastejar lentamente escada acima, ou escada abaixo, numa casa que não concebemos. 35

postergar a realização plena torna-se um modo de vida. 36

em termos sociais, o trabalho de curto prazo por tarefa altera o funcionamento do trabalho em conjunto. 51

a desigualdade se traduz em termos de distância; quanto maior [...] quanto menos for sentido o vínculo de ambos os lados - maior a desigualdade social entre eles. 55-56

os três déficts da mudança estrutural são baixo nível de lealdade institucional, diminuição da confiança informal entre os trabalhadores e enfraquecimento do conhecimento institucional. 62

nas empresas de baixo capital social, a presão adquire vida própria e se torna embotadora. 64

[...] a miaoria dos programas de computação mais aplica que adapta normas. 67

uma pessoa de origemprivilegiada pode se dar a luxo da confusão estretégica, o que não acontece com um filho das massas. Oportunidades casuais podem oferecr-se ao filho do privilégio em virtude do meio familiar e das redes educacionais; o privilégio diminui a necessidade de traçar estratégias. 76

costuma-se dizer que as nova tecnologia pode de certa forma corrigir esta desigualdade (rede de contatos) [...] os jovens se apoderem da informação necessária para aproveitar as oportunidades. No mundo do trabalho [...] não é o que acontece. O contato pessoal é importante. Por isso é que os especialistas técnicos comparecem a tantas convenções [...] ficam fora dos processos decisórios informais. 76

o social foi minorado; o capitalismo permanece. A desigualdade torna-se cada vez mais vinculada ao isolamento. 77

os operários modernos finalmente estão enfrentando o fantasma da inutilidade automatizada. 89

quando adquirimos uma capacitação, não significa que dispomos de um bem durável. 91

a experiência vai perdendo valor à medida que aumenta [...] a extinção de capacitações é uma característica permanente do avanço tecnológico. A automação é indiferente á experiência. [...] mais barato comprar novas capacitações do que pagar pelo retreinamento. 94

Estaria a nova economia gerando uma nova política? 123

O modelo institucional do futuro não lhes fornece uma narrativa de vida em funcionamento [...] na sociedade de redes, as redes informais são tênues. 124

Na era do capitalismo social, as tensões do sistema econômico geravam ressentimento. [...] conjunto de emoções [...] crença de que pessoas comuns que jgaram conforme as regras não receberam um tratamento justo. [...] emoção intensamente social que tende a dissociar-se de suas origens econômicas; [...] gera mágoa, [...] raiva contra [...] inimigos internos que aparentemente roubam recompensas sociais a que não têm direito. No passado [...] a religião e o patriotismo tornaram-se as armas da vingança. Essa emoção não desapareceu [...] trabalhadores [...] centro-esquerda [...] para a extrema-direita, traduzindo as tensões materiais em símbolos culturais [...] uma forma excessivamente acanhada de equacionar economia com política, pis a insegurança material não acarreta apenas maneiras de demonizar os que representam a mudança, com todo o seu séquito de inseguranças. 124

A paixão autocomsumptiva. 127

a realização e a mestria são autoconsumptivas, desgastando-se os contextos e os conteúdos do conhecimento ao serem usados. 132

o que mobiliza o consumidor é a sua própria mobilidade e imaginação: o movimento e a incompletude energizam a imaginação; da mesma forma que a fixidez e a solidez a embotam. 138-139

consumidores de potência. 140

todas as máquinas [...] jogam com a identificação do comprador com o excesso de capacidade nelas contido. A máquina torna-se uma espécie de prótese médica. 142

progressista quero dizer que uma boa forma de organização política é áquela em que todos os cidadãos acreditam que estão juntos num projeto comum. [...] a nova ordem institucional se exime de responsabilidade, tantando apresentar sua própria indiferença como liberdade [...] o vício da política derivada do novo capitalismo é a indiferença. 150

estamos tão habituados à sobreposição dos comportamentos políticos e de consumo que perdemos de vista as consequências: a obsessão da imprensa e do público com os taços individuais de caráter dos políticos mascara a realidade da plataforma de consenso. [...] efeito de divorciar o poder da responsabilidade. 151

talvez a forma mais grave [...] na política moderna seja a recontextualização dos fatos. 151

Mas a facilidade para o usuário faz picadinho da democracia. Para esta, é necessário que os cidadãos estejam dispostos a se esforçar para descobrir como funciona o mundo ao seu redor. 155-156

a economia gera um clima político no qual os cidadãos têm dificuldade para pensar como artesãos. [...] a própria tecnologia [...] milita contra o engajamento. 156

o Ipod incapacita o usua´rio por seu próprio excesso de capacidade; de modo geral, o excessod e informação gerado pela tecnologia moderna ameaça tornar passivos seus destinatários

seely brown the social life of information, 2000

https://books.google.nl/books?id=2rgbwF6vn0EC&lpg=PA63&hl=pt-BR&pg=PP1#v=onepage&q&f=false

Uma transação do tipo texto-mensagem [...] muito pouco se assemelha a uma conversa; sua linguagem é mais primitiva, sendo eliminados na tecnologia os silêncios que indicam dúvida ou objeção, os gestos irônicos, as digressões momentâneas - tudo que faz a comunicação mútua. Sempre que vem a ser institucionalizada rigorosamente, a a tecnologia desabilita o artesanato da comunicação. 157

valores críticos: narrativa, utilidade e perícia. 168

as instituições de ponta, atuando em contextos temporais curtos e incertos, privam os indivíduos do sentido do movimento narrativo. O que significa [...] que os acontecimentos projetados no tempo se conectam, que a experiência se acumula. 169

a insegurança não acontece a um novo estilo de burocracia, ela é ativada. 172

As políticas giram em torno de um pivô cultural, que envolve a própria narrativa. Se na ficção o enredo bem urdido saiu de moda, na vida comum ele é uma raridade; as histórias de vida raramente são bem configuradas. Em etongrafia [...] tentativa de nossos entrevistados de fazer com que sua experiência faça sentido. E não é algo a ser resolvido de uma só vez. Muitas vezes, o entrevistado volta a relatar e reorganizar de outra maneira o mesmo acontecimento, às vezes fracionando uma história aparentemente lógica em pedaços desconexos, para tentar entender o que está sob a superfície. 172

iniciativa de narração [...] o narrador ativamente mobilizado na interpretação da experiência. 173

Nas instituições, os indivíduos muitas vezes podem sucumbir ao sentimento de que não dispõem de iniciativa narrativa; ou seja, de que carecem da possiblidade de interpretar o que lhes está acontecendo. 173

o que tentei explorar [...] foi um paradoxo: tentei mergulhar o mjais fundo possível num modo de vida cada vez mais superficial, uma cultura emergente que repudia o esforço e o compromisso corporificados na perícia artesanal. 179

é possível que a revolta contra essa cultura debilitada seja a próxima página que vamos virar. 180

 


Geração Beat

GINSBERG, Allen. A arte da poesia. In.: Geração Beat. Organização de Sérgio Cohn. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010. p. 124-165

A única forma de você se salvar pe cantando [...] de sair das profundezas desta depressão, de arrastar seu corpo ao êxtase e ao entendimento, é se dar completamente aos desejos do seu coração. A imagem é determinada pelo compasso do coração. Você fica de joelhos ou sentado ou apoiado na cabeça e canta preces e mantras até atingir um estado de êxtase e entendimento, e o êxtase transborda do seu corpo [...] o intelecto [...] não tem relevancia nenhuma para a flor que está viva agora. 141


segunda-feira, 30 de outubro de 2017

GLEIK, James. A informação

GLEIK, James. A informação: uma história, uma teoria, uma enxurrada. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.


O autor compara a palavra informação com a palavra energia, em que no sec. XIX foi trazida da filosofia para a matemática, conferindo à energia seu lugar fundamental na visão que os físicos têm da natureza. O mesmo ocorreu com a informação em que um ritual de purificação se tornou necessário. 16

A economia está se reorganizando nos moldes de uma ciência da informação, agora que o próprio dinheiro está concluindo um arco de desenvolvimento da matéria para os bits, armazenado na memória de computadores e em fitas magnéticas, e que as finanças mundiais correm pelo sistema nervoso global. Mesmo quando o dinheiro parecia ser um tesouro material, ocupando espaço nos bolsos, nos compartimentos de carga dos navios e nos cofres dos bancos, ele sempre foi informação. Moedas e notas [...] tecnologias de vida [...] curta para o registro da informação que determina quem é dono do quê. 17

Tudo aquilo que é físico tem uma origem informacional-teórica, e estamos num universo participativo. Wheeler apud 18

Todo universo passa [...] a ser visto como um computador - uma máquina cósmica de processamento de informações. 18

À medida que o papel desempenhado pela informação se expande para além dos limites da capacidade humana, ela se torna excessiva. 19

Cada novo suporte transforma a natureza do pensamento humano. No longo prazo, a História é a história da informação adquirindo consciência de si mesma. 20

Cortando o ar parado da noite sobre um rio, o bater do tambor podia chegar a uma distância de aproximadamente dez km. Transmitidas de vilarejo em vilarejo, as mensagens podiam percorrer mais de 150 km em questão de uma hora. 23

Os antigos não eram desprovidos de recursos. Os gregos usavam faróis de fogo na época da Guerra de Tróia, no séc. XII a.C. [...] uma fogueira armada no cume de uma montanha podia ser vista por postos de sentinelas a uma distância de mais de 30 km. 24

Uma escolha binária, alguma coisa ou coisa nenhuma: o sinal de fogo significava alguma coisa. [...] a transmissão desse único bit exigiu imenso planejamento, muito trabalho, vigilância atenta e lenha. 25

As pessoas tentaram bandeiras, cornetas, sinais de fumaça e troca de reflexos entre espelhos. Eles conjuraram espíritos e anjos para atender aos propósitos da comunicação- e os anjos são, por definição, mensageiros divinos. A descoberta do magnetismo parecia ser especialmente promissora [...] encarnavam poderes ocultos. 25

A ideia das agulhas sintonizadas aparecia sempre que se reuniam filósofos naturais e artistas e artistas ilusionistas. Na Itália um homem tentou vender a Galileu um método secreto para se comunicar com outra pessoa a [...] 3 mil km [...] por meio de uma certa propriedade das agulhas magnéticas. 25

Um produto do novo conhecimento da astronomia e da geografia do séc. XVII. Essa foi a primeira tentativa de estabelecer a então já mais sólida ideia da simultaneidade [...] naquela época, ninguém no mundo conseguia se comunicar tanto, nem tão rápido nem tão livremente, quanto os africanos e os seus tambores. 27

Vail e Morse se voltaram para a ideia de um alfabeto codificado, usando sinais [...] aqueles elementares sinais teriam de dar conta de todas as palavras da linguagem falada ou escrita. 28

Uma testemunha ficou impressionada com a maneira como os telegrafistas internalizavam essas habilidades. 29

John F. Carrington acabou percebendo que os batuques transmitiam não apenas informes e alertas, mas também preces, poesias e até piadas. Os percussionistas não estavam sinalizando, e sim falando: eles falavam num idioma especialmente adaptados para os tambores. 30

Para os percussionistas africanos, as mensagens tinham de ter cerca de oito vezes o comprimento de suas equivalentes faladas. 35

Em pouco tempo, surgiu uma geração de pessoas para quem o rumo da tecnologia da comunicação saltou diretamente do tambor falante para o celular, pulando os estágios intermediários. 36

Nos anos 60 e 70 Walter J. Ong declarou que a era eletrônica seria uma nova era da oralidade [...] com a palavra dita ampliada e difundida como nunca antes [...] As novas mídias pareciam ser o rádio, o telefone e a televisão. Mas estes eram apenas fracos raios de luz que despontavam no céu noturno, uma indicação da fonte de luminosidade que ainda estava além do horizonte [...] ele sem dúvida reconheceria sua qualidade transformadora: não apenas uma revitalização de formas mais antigas, mas algo inteiramente novo. Ele pode ter pressentido a descontinuidade que viria [...] poucos compreendiam melhor do que Ong a profundidade daquela descontinuidade. 38

Por ser uma tecnologia, a escrita exige premeditação e o domínio de uma certa arte. Já a linguagem não é uma tecnologia, independentemente de seu grau de desenvolvimento e de sua eficácia. Não dá para enxerga-la como algo distinto da consciência – ela é aquilo que a consciência produz [...] mais ou menos o mesmo pode ser dito a respeito da escrita – trata-se de um ato concreto – mas, quando a palavra é representada no papel ou na pedra, assume uma existência separada como artifício. Ela é o produto de ferramentas, e é ela própria uma ferramenta. E, como muitas tecnologias que se seguiram, imediatamente encontrou detratores. 39

A escrita passa a existir para possibilitar a retenção da informação ao longo do tempo e do espaço. Antes da escrita, a comunicação é temporária e local [...] o caráter temporário da palavra dita era um dado que dispensava reflexão. A fala era tão transitória que o raro fenômeno do eco, um som ouvido uma vez e então de novo, parecia ser um tipo de mágica. 41

O poder não está apenas no conhecimento, preservado e passado adiante, por mais valioso que seja, e sim na metodologia: indicações visuais codificadas, o ato da transferência, substituindo signos por coisas. E então, mais tarde, signos por signos. 41

A primeira vista, trata-se de algo insondável. Começa a fazer sentido ao ser considerado uma afirmação a respeito da linguagem e da lógica. 49

O conhecimento tem um valor e um custo de descoberta, que devem ser contabilizados e pesados. 95

Antes do telégrafo elétrico havia o telégrafo simples [...] eles eram ópticos [...] era uma torre para o envio de sinais para outras torres localizadas dentro de seu alcance visual. A tarefa consistia em desenvolver um sistema de sinais mais eficiente e flexível do que as fogueiras. 138

O Conde de Miot de Melito afirmou em suas memórias que Claude Chappe entregou entregou sua ideia ao Gabinete da Guerra sob o nome de tachygraphe (leitor ágil) e que ele, Mihot, propusera télégraphe. 138

Certos sinais eram reservados à correção de erros e ao controle: começo e fim, confirmação de recebimento, atraso, conflito [...] e falha. Outros eram usados aos pares, indicando para o operador determinadas páginas e números de linhas em livros de códigos com mais de 8000 verbetes potenciais: palavras e sílabas, bem como nomes próprios de pessoas e lugares. Tudo isso foi mantido como um segredo [...] as mensagens seria transmitidas pelo céu, a vista de todos. Chappe deu por certo que a rede telegráfica com a qual ele sonhava seria um departamento de Estado, propriedade do governo operada por funcionários públicos. Ele não a via como um instrumento de disseminação do conhecimento ou de geração de riqueza, e sim como um instrumento de poder. 140

Telégrafo significava escrita distante [...] em 1774 Georges-Louis Le Sage, de Genebra, dispôs 24 fios separados e designou a eles 24 letras [...] em 1787, um francês chamado Lomond passou um fio por todo o seu apartamento e disse ser capaz de sinalizar com letras distintas ao fazer uma esfera de metal dançar  em diferentes direções [...] em 1809, um alemão, Samuel Thomas von Sommerring criou um telégrafo de bolhas, cada jato de bolhas indicava uma única letra [...] conseguiu fazer com que a eletricidade soasse uma campainha [...] um norte-americano chamado Harrison Gray Dyer tentou enviar sinais por meio de faíscas criadas a partir do ácido nítrico que descoloria o papel de tornassol [...] então surgiram as agulhas [...] repelida pelo magnetismo. 147

Todos os aspirantes a inventores do telégrafo elétrico [...] trabalhavam com base no mesmo conjunto de ferramentas. Eles tinham fios e agulhas magnéticas. E possuíam baterias [...] não tinham luzes. Não contavam com motores. Dispunham apenas dos mecanismos que eram capazes de construir com a madeira e o latão: pinos, parafusos, rodas, molas e alavancas. E, em última análise, tinham um alvo em comum: as letras do alfabeto. 149

Peter Roget, autor de um Tratado de eletromagnetismo, bem como de um sistema de classificação verbal batizado por ele de Thesaurus. 150

Morse teve a ideia a partir da qual todo o restante fluiu. Sem saber nada a respeito de esferas metálicas, bolas e papel de tornassol, ele viu que um sinal poderia ser formado por algo mais simples, mais fundamental e menos tangível - o mais mínimo dos eventos, o fechamento e a abertura de um circuito. Não eram necessárias agulhas. A corrente elétrica fluía e era interrompida, e as interrupções poderiam ser organizadas para criar significado. 151

A relação entre o telégrafo e o jornal era simbiótica. As reações positivas ampliaram o efeito. O telégrafo, por ser uma tecnologia da informação, serviu como agente de seu próprio domínio. A expansão global do telégrafo continuou a surpreender até mesmo seus defensores. 156

Os conceitos mais elementares estavam agora atuando como consequência da comunicação instantânea entre pontos separados por grandes distâncias. Observadores culturais começaram a dizer que o telégrafo estava aniquilando o tempo e espaço [...] de fato parecia corromper ou encurtar o tempo num sentido [...] o tempo como obstáculo ou fardo para as relações humanas. [...] O mesmo ocorria com o espaço [...] antes todos os horários eram locais [...] agora o tempo podia ser local ou padrão, e essa distinção deixou perplexa a maioria das pessoas [...] quando lugares distantes foram coordenados no tempo [...] puderam [...] medir com precisão a própria longitude [...] horário certo [...] distância necessária [...] longe de aniquilar o tempo a sincronia ampliou seu domínio. A própria noção de sincronia e a consciência de que se tratava de uma ideia nova fizeram cabeças entrar em parafuso. 157

O telégrafo [...] representa uma nova era na transmissão das informações como também deu origem a toda uma nova classe de ideias, uma nova espécie de consciência. Nunca antes uma pessoa teve a consciência de saber com certeza aquilo que estava ocorrendo num determinado momento numa cidade longínqua. 157 Adam Frank apud

A história (e o fazer história) também mudou [...] levou a preservação de inúmeras minúcias relativas à vida cotidiana. Durante algum tempo [...] tentaram manter um registro de todas as mensagens. [...] um armazenamento de informações sem precedentes. 158

Andrew Winter (1863) fez uma previsão: não está distante [...] o dia em que todos poderão conversar com os demais sem ter de sair de casa. 160

Sob mais de um aspecto, usar o telégrafo significava escrever em código. O sistema Morse de pontos e traços não foi chamado inicialmente de código. Era chamado apenas de alfabeto. Alfabeto Telegráfico Morse [...] mas não se tratava de um alfabeto [...] ele não representava o som por meio de signos [...] tomou o alfabeto como ponto de partida e o incrementou, por substituição, trocando signos por novos signos. Tratava-se de um meta-alfabeto, um alfabeto de segundo grau. Esse processo – a transferência de significado de um nível simbólico a outro – já tinha um lugar na matemática. De certa forma, era a própria essência da matemática [...] passava a ser um presença constante na caixa de ferramentas do ser humano [...] por causa do telégrafo, no fim de século XIX as pessoas se [...] familiarizaram, com a ideia dos códigos [...] o movimento de um nível simbólico para outro podia ser chamado de codificação. 160

O telégrafo servia não apenas como um dispositivo, mas como um suporte – um meio, um estado intermediário. A mensagem passa por esse suporte. Além da mensagem, é preciso considerar também seu conteúdo. 162

George Boole [...] propôs que os únicos números permitidos fossem 0 e 1. Era tudo ou nada [...] até então, a lógica pertencera ao domínio da filosofia. Boole estava reivindicando sua posse em nome da matemática. 172

Três grandes ondas de comunicação elétrica formaram suas cristas em sequência: a telegrafia, a telefonia e o rádio. As pessoas começaram a ter a sensação de que era natural possuir máquinas dedicadas ao envio e ao recebimento de mensagens. 178

Aritmética binária. Bem ali, na tese de mestrado de um assistente de pesquisas, estava a essência da futura revolução dos computadores. 183

Leibnitz, Babage, Boole, todos acreditavam que a perfeição do raciocínio poderia advir da codificação perfeita do pensamento [...] com uma codificação desse tipo, as falsidades lógicas seriam denunciadas de forma instantânea.

A tão buscada linguagem universal, as característica universalis que Leibnitz quisera inventar, estivera bem ali o tempo todo, nos números [...] eram capazes de codificar todo o raciocínio. Podiam representar todas as formas de conhecimento. 193

Falta de imaginação diante de uma tecnologia radicalmente nova. O telégrafo estava aos olhos de todos, mas as lições trazidas por ele não tinham uma relação muito clara com esse novo aparelho. O telégrafo exigia alfabetização – o telefone abraçava a oralidade. Para ser enviada via telégrafo, uma mensagem tinha antes de ser escrita, codificada e transmitida por um intermediário treinado. Para usar o telefone, bastava falar. Justamente por esse motivo, parecia um brinquedo [...] não deixava registros permanentes [...] não tinha futuro [...] empresários e comerciantes o consideravam pouco sério. Se o telégrafo trabalhava com fatos e números, o telefone apelava as emoções. 198

Assim, emergem todos os tipos de previsões. Negativas e positivas, de simultaneidade e conexão global. Eu

Teoria da informação de Shannon. A informação é incerteza, surpresa, dificuldade, entropia. 227

Era necessário uma nova unidade de medida. Dígitos binários ou bits. Por ser a menor quantidade possível de informação, um bit representa a quantidade de incerteza que existe no arremesso de uma moeda. 237

Norbert Wiener [...] se preocupava muito com a compreensão dos distúrbios mentais, com as próteses mecânicas e com os deslocamentos sociais que poderia se seguir à ascensão das máquinas inteligentes [...] desvalorização do cérebro humano proporcional à desvalorização que o maquinário das fábricas tinha imposto à mão humana. 249

Von Neumann [...] ele havia desenvolvido recentemente uma teoria dos jogos [...] uma matemática da informação incompleta. 253

A unidade fundamental é um escolha binária. 262

Pc memoria, execução, controle instruções codificadas em números ou programas. Turing 263

A linguagem do estímulo e da resposta começou a dar lugar à transmissão e recepção de informação. 268

A teoria da codificação se tornou uma parte crucial da ciência da computação. 272

Do ponto de vista estatístico, tudo tende a máxima entropia. 283

Máquina de movimento perpétuo, perpetuum mobile 287

Para o teórico da informação, a entropia é uma medida da incerteza em relação a uma mensagem. 289

A nova biologia molecular começou a examinar (1940) a transmissão e o armazenamento de informação. 298 pensar além dos fluxos de energia e matéria e focar no fluxo da informação.

Os genes [...] não são concorrentes [...] seu sucesso ou fracasso ocorre por meio da interação. 315

As notas e o tempo marcados no papel não são a música. A música não é uma série de ondas de pressão ressoando pelo ar; nem os sulcos impressos em vinil nem as marcas queimadas em CDs; [...] A música é a informação. Da mesma forma [...] os genes em si são feitos de bits. 318

Fred Dretske (1981) no princípio havia a informação. O verbo veio depois. 332

Temos consciência de muitas espécies de informação. Nomeamos seus tipos sardonicamente, como se quiséssemos assegurar de que os compreendemos. lendas urbanas ou mentiras deslavadas. Nós os mantemos vivos em torres de servidores com ar-condicionado. Mas não podemos controla-los. Quando um jingle gruda em nosso ouvido, ou uma nova tendência vira o mundo da moda de cabeça para baixo, ou uma farsa domina o debate em escala mundial durante meses ou então desaparece com a mesma rapidez com que surgiu, quem é o senhor e quem é o escravo? 332

Rolf Landauer a informação é física. Exige objetos físicos e obedece as leis da física. 370

Não se deve chorar por descanso, assim como não se deve fazê-lo por uma fivela perdida [...] Deixamos para trás conforme reunimos novidades, como viajantes que precisam levar tudo nos braços, e aquilo que deixamos cair será apanhado por aqueles que vêm atrás. A procissão é muito longa e a vida, muito curta. Morremos na marcha. Mas nada existe fora da marcha e, por isso, nada pode ser perdido e afastado dela. As peças faltantes de Sófocles serão recuperadas pedaço por pedaço, ou serão escritas novamente em outro idioma. Sptimus. 388

O texto codifica números, e os números apontam para locais no ciberespaço, dividindo-se em redes, sub-redes e dispositivos. 400

Revolução da comunicação dura séculos e ainda está em marcha. 410

Depois que surgiu a teoria da informação, logo se seguiram a sobrecarga de informação, saturação da informação, ansiedade de informação e fadiga de informação [...] reconhecida pela OED em 2009 como síndrome atual. 412

Somos todos usuários da Biblioteca de Babel agora, e somos também os Bibliotecários. Oscilamos entre o êxtase e a perplexidade. 435

A Biblioteca perdurará - ela é o universo. Quanto a nós, nem tudo foi escrito, não estamos nos convertendo em fantasmas. Caminhamos pelos corredores, vasculhando as prateleiras e reorganizando-as, procurando linhas de conhecimento em meio a léguas de cacofonia e incoerência, lendo a história do passado e do futuro, reunindo nossos pensamentos e os pensamentos dos outros e, de vez em quando, olhando espelhos, nos quais podemos reconhecer criaturas da informação. 435


segunda-feira, 9 de outubro de 2017

ler para no morir

Foi abandonado, o mundo já não é maravilhoso. Como em um jet lag permanente, não consegue se conectar com a realidade que o envolve. Freud dizia que as palavras e a magia foram no princípio a mesma coisa. É por isso que continuamos procurando refúgio nos livros quando a vida nos prega uma brincadeira estúpida? Você, passageiro em momentos ruins, abre um romance e em suas páginas encontra algo parecido a um bote salva-vidas, um alívio balsâmico ao desassossego.

Os leitores vorazes sabem bem que as bibliotecas e as livrarias são uma panaceia eficaz à alma, como já se afirmava na Antiguidade. A ficção e a poesia, afirma a romancista Jeanette Winterson, são remédios que curam a ruptura que a realidade provoca em nossa imaginação. Como diz a máxima horaciana dulce et utile, nos ensinam prazerosamente. O eco das palavras, seu ritmo, e as imagens com uma grande carga emocional inundam e ativam os recônditos de nossa consciência. Quando lemos um texto literário inteligente e sedutor, o mundo se torna mais habitável.

Entre os benefícios de se ler ficção, o primeiro, por mais óbvio que pareça, é chegar a nos conhecer melhor. Proust, a quem hoje poucos negarão sua aptidão à ciência cognitiva, afirmava que cada leitor, quando lê, é o próprio leitor de si mesmo. Acrescentava que a obra do escritor não é mais do que uma espécie de instrumento ótico que este oferece ao outro para permitir-lhe discernir o que, sem esse livro, não seria capaz de ver por si mesmo. Entrar no universo dos romances é viver múltiplas vidas. Com um livro nas mãos se abre diante de nós um terreno para a experimentação de inúmeras circunstâncias. A biblioterapia é possível graças ao choque de identificação que se produz no leitor quando se vê refletido na história. Sentimos empatia por outras pessoas, outras formas de pensar. A leitura, além disso, é uma aventura intelectual trepidante. Para o Nobel de Literatura André Gide, ler um escritor não é só ter uma ideia do que ele diz, mas viajar com ele.

Ler nos coloca em um espaço intermediário: ao mesmo tempo em que deixamos em suspenso nosso eu, nos conecta com nossa essência mais íntima, um bem valioso para se manter certo equilíbrio nesses tempos de distração. A leitura, dizia María Zambrano, nos brinda com um silêncio que é um antídoto ao barulho que nos rodeia. Ela nos procura um estado prazeroso semelhante ao da meditação e nos traz os mesmos benefícios que o relaxamento profundo. Ao abrir um livro conquistamos novas perspectivas, pois a ficção divide com a vida sua essência ambígua e multifacetada. Uma vez que só podemos ler um número limitado de títulos, o que procuramos? Obras que reafirmem nossas crenças, ou façam com que essas balancem? Para Kafka era muito claro, só deveríamos nos adentrar nas obras que incomodam: "Um livro precisa ser um machado que abre um buraco no mar gelado de nosso interior".

FONTE: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/09/cultura/1507563876_434538.html?id_externo_rsoc=FB_BR_CM

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Luiz Carlos Cancellier de Olivo, o Cao, está morto.


Nas estatísticas oficiais a morte de Cao será contada como suicídio.

Mas ninguém se iluda. Mãos visíveis algumas, que podem ser identificadas sem que seja necessário levar ninguém à prisão, e mãos invisíveis, muitas mãos invisíveis, o empurraram das alturas, de modo que os seus ossos se quebrassem, o sangue jorrasse na hemorragia incontrolável, e a vida se extinguisse rapidamente no choque terrível. Instantes depois do baque surdo, o coração cheio de bondade, de tolerância, de respeito ao próximo, parou de bater.

Que mãos eram essas? Mãos de quem talvez saiba o que é vingança, mas sabe pouco do que seja justiça. Mãos de quem só têm a si mesmo como honestos e virtuosos, senhores do bem e do mal, da reputação de quem mal conhecem e que não têm curiosidade de conhecer. Mãos de quem, tendo o poder de prender, ignoram a gravidade do delito suposto, e para quem tanto faz ter o cidadão ficha limpa ou antecedentes criminais. Mãos de quem, sendo ciosos da imagem de suas respectivas instituições, desprezam, entretanto, a imagem das demais, como deuses de um alcorão, uma bíblia fundamentalista.

Mãos de quem, tendo o poder de prender sem flagrante, e de começar uma investigação pela coerção, constrangimento e prisão dos suspeitos, não chegam a perceber que o método rústico revela a incapacidade de cumprir seus deveres e obrigações com inteligência, método e moderação.

Mãos de quem, ciosos de seu poder e autoridade, ao invés de exercê-los com critério, partindo do pressuposto inalienável de que o cidadão pode ser culpado, pode ter só parte de culpa, ou nenhuma culpa, pensando que seu juízo e sua intuição são infalíveis, só têm olhos para as evidências que confirmem as suas suspeitas.

Mãos de quem, ainda ontem frequentavam os bancos da faculdade, mas para quem a presunção da inocência - pináculo do estado de Direito, pilar da democracia, conquista da civilização - é um inútil ornamento da lei.

Mãos de quem não abrigam em seus corações nenhum sinal de bondade, de compreensão pelo outro, e em suas cabeças nenhum raciocínio a respeito da proporção dos seus atos, nenhuma projeção dos seus efeitos e suas consequências, para o ser humano, a instituição, a comunidade.

Mãos de quem em nada parecem saber que a prisão é, em toda circunstância, a não ser nas ditaduras, desonrosa. Em nada parecem saber que abate, constrange e humilha, aprisionar, examinar alguém em corpo nu, vesti-lo em roupa de prisioneiro, e que tudo isso adentra pelo terreno da barbárie, ainda mais quando se faz sem flagrante, sem a sentença, antes mesmo de ser réu.

Mãos de quem se aproveitam de uma época inglória e insana, de uma sociedade exaurida pelos escândalos públicos, e que em boa parte, têm espuma e sangue nos lábios, e para quem tudo é joio, e trigo só eles são, tendo na ponta da língua os chavões da época, de condenação geral aos bandidos de verdade, mas levando juntos os que passaram perto e os inocentes que têm o azar de atravessar o caminho.

Um pouco de humildade, um pouco de humanidade não lhes faria mal. Não conheço nenhum desses agentes da lei, e não desejo conhecê-los, porque tenho medo deles. Que autoridades são essas que ao invés de proteger nos causam medo e terror? Quem são eles, assim destituídos de humanidade e razão? É preciso agir com a mão assim pesada, com tal crueldade, com tal virulência e desumanidade?

Não se passa o país a limpo assim, senhores e senhoras. Digo de novo o que já escrevi: os senhores, as senhoras, estão jogando o bebê fora junto com a água do banho.

Mãos não só de autoridades, mas de uma imprensa que primeiro atira e só depois pergunta quem vem lá, quando e se pergunta. Uma imprensa que toma como verdadeira, em princípio, a palavra da autoridade, não mediada, não contextualiza. De blogueiros, ativistas e pessoas "comuns" que, raivosos, expelem argumentos chulos, pensamentos prontos, clichês preconceituosos, manifestações de atraso, ignorância, e ódio, muito ódio nas redes sociais Mãos de quem confunde moral com moralismo de baixo custo, que a todos rotula, por método, costume e um certo prazer sádico.

Cancellier almoçou lá em casa há menos de uma semana. Com o filho Mikhail, Ricardo Baratieri, Arlete e Nara Micaela. Ao final, nós estávamos reconfortados. Cancellier nos pareceu lúcido, fazendo um esforço genuíno para compreender que tinha sido vítima de uma dessas armadilhas do destino, uma coincidência infeliz. Ele parecia razoavelmente recuperado do golpe sofrido.

Um turbilhão que tudo arrasta, um vendaval que se solta, uma cilada da vida: assim pareceu Cancellier encarar o seu drama pessoal. Ele aparentava uma calma estranha, uma misteriosa resignação. Quando soube de sua morte ontem, compreendi imediatamente: ele já havia engendrado o seu destino, fingiu serenidade, para que ninguém quisesse interromper o plano que já tinha traçado. Alguém já disse que não há pior vergonha do que a de não ter feito o que lhe imputam. Muito pior que a desonra, é o sentimento de quem não a merece.

Podem ficar tranquilos todos e cada um dos mais de cem agentes públicos e autoridades do Estado que, de alguma forma contribuíram para desenlace trágico, dando ou cumprindo ordens, assinando as portarias, os despachos, cumprindo as frias formalidades da "lei", que este homem singular, Cancellier, que não cultivou em vida a raiva, a mágoa, o ressentimento, também não os levará para a eternidade.

Conduziram ao camburão, abriram as portas do cárcere um homem que não queria mal a ninguém, que não fazia mal a ninguém. Um homem de coração generoso e aberto, um democrata na teoria e mais ainda na prática, um homem de diálogo e conciliação, um campeão da harmonia e da paz. Ah, Cancellier, como você, querido amigo e querido irmão fará falta, ainda mais nesta terra brasileira nunca tão dilacerada pela dissensão e a intolerância, apequenada nos conflitos políticos de uma República abastardada, no facilitário do ódio, na insensatez arrogante de muitas das suas elites.

Como fará falta sua voz calma e pacificadora, em busca da palavra certa em favor do diálogo e do entendimento, na instituição que você respeitou, protegeu e amou mais do que qualquer outro, a quem você emprestou o seu talento e capacidade de trabalho, esta Universidade Federal de Santa Catarina, o palco involuntário de uma tragédia que marcará para sempre e indelevelmente a sua história.

Abraço caloroso, Mikhail, Júlio, Acioly, Cristiane, familiares, amigos. Choremos o passamento de Cao Cancellier e sigamos o seu exemplo, de uma vida dedicada ao bem, à justiça, à liberdade e à paz entre os homens. Descanse Cao em algum lugar, na dimensão possível. E rezemos para que esta tragédia que nos causa tamanho torpor, tal comoção, que nos fere tão fundo na alma, de alguma maneira seja uma lição que nos afaste da barbárie, nos contagie com um pouco de fraterna humanidade, nos dê força para enfrentar esta provação.

Abraço sentido e caloroso, reitora Alacoque, pró-reitores, diretores, servidores e alunos. Universidade, se bem interpreto o pensamento do amigo e irmão que se foi de forma tão despropositada, é lugar onde se privilegia o conhecimento e o saber, a extensão e pesquisa. É o lugar dos crentes e dos ateus, dos socialistas e dos liberais, da direita e da esquerda, dos negros, indígenas e brancos, dos pobres e dos ricos, das mulheres e dos homens, dos héteros e dos homossexuais. Aqui se encontram, convivem e aprendem para a vida e a cidadania, todas as tribos da comunidade nacional e planetária.

Todos os que se acham superiores moralmente, politicamente, esqueçam. Somos todos iguais ou parecidos em defeitos e qualidades. Experimentem, como o Cao fazia o tempo todo, calçar de vez em quando as sandálias da humildade. A Universidade não é o lugar apropriado para a guerrilha política, para o "nós" contra "eles". Aqui podem e até devem se bater as facções, as narrativas históricas, mas ninguém é dono do futuro e só uma busca é possível e legítima: a de uma sociedade próspera, justa, livre e fraterna. Universidade rima com verdade e liberdade.

Nelson Wedekin"

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Piketty: desigualdade do Brasil só muda com uma guerra!


(...) Folha - O estudo de Morgan mostra que a renda da metade mais pobre aumentou junto com a dos mais ricos. Por que a concentração no topo da pirâmide é tão preocupante?

Thomas Piketty - Porque, apesar dos avanços dos últimos anos, o Brasil continua sendo um dos países mais desiguais do mundo. Em nossa base de dados, só encontramos grau de desigualdade semelhante na África do Sul e em países do Oriente Médio.

Houve um pequeno progresso nos segmentos inferiores da distribuição da renda, beneficiados por programas sociais e pela valorização do salário mínimo. É alguma coisa, mas os pobres ganharam às custas da classe média, não dos mais ricos, e a desigualdade continua muito grande.

quinta-feira, 18 de maio de 2017

Enjoy the silence

A autoimposição de "ser produtivo" marca a existência dos indivíduos nas grandes cidades. A calma das palavras e o ouvir o outro com atenção são comportamentos e gestos que se tornaram pouco importantes. Clichês como "o tempo urge" ou "tempo é dinheiro" pertencem à dimensão produtiva da vida. Por outro lado, também servem como desculpa para o adiamento do descanso, do ócio e do contato consigo próprio. A tecnologia que invade o cotidiano e o progresso material podem ser antagonistas do tempo para o nada fazer, o tempo da preguiça. Afinal, qual o lugar do ócio nos dias atuais?

Se a produtividade está no centro da vida dos habitantes dos centros urbanos, a inaptidão à quietude – verborragia, em oposição ao silêncio – é uma marca comportamental dos indivíduos. A falação tomou conta da realidade e passamos a nos importar com o que não importa. As redes sociais simbolizam um tipo de cacofonia, todos dando opiniões e falando ao mesmo tempo sem a capacidade de ouvir (ler) o outro. As mídias sociais também impossibilitam o estar só consigo mesmo, já que as pessoas estão conectadas dia e noite. O tempo para o vazio e para a solidão já não existe. Disso tudo, resta compreender qual é a relevância do silêncio para a reflexão e para a fala no mundo contemporâneo.

EU VIA, MAS NÃO SABIA O QUE VIA
Adauto Novaes, filósofo, diretor do Centro de Estudos Artepensamento, que em 2016 celebrou três décadas de suas séries anuais de conferências, organizou duas coletâneas de ensaios, Mutações – O elogio à preguiça e Mutações – O silêncio e a prosa do mundo, ambas voltadas ao pensamento sobre a preguiça e o silêncio. Em entrevista à Revista da Cultura, ele afirma que, para entender o sentido que o ócio (preguiça) e o silêncio têm, convém situá-los no momento atual: "Vivemos não em estado de crise, mas em uma mutação em todas as áreas da atividade humana: nos costumes, nas mentalidades, na ética, na política, na linguagem e, principalmente, nas ideias de espaço e tempo, tudo isso produzido pela revolução técnico-científica, biológica e digital. O silêncio e a fala, o trabalho do pensamento e a função da preguiça no trabalho do pensamento também estão sendo afetados por essa mutação".

O filósofo explica que "a negação da ideia de duração a partir do domínio do veloz e do volátil, em todas as áreas hoje", é fundamental para abordar a paciência (preguiça) e o silêncio. Novaes confere certa "materialidade" a essa ideia quando aborda a criação artística e intelectual em contraste com as plataformas digitais de difusão de conteúdo. "Uma pesquisa recente calculou que os usuários passam 1 bilhão de horas por dia no YouTube, e esse número tende a aumentar. Outra pesquisa revela um aumento exponencial de palavras faladas a partir da invenção das novas tecnologias digitais. O que isso significa? Sabemos que as criações de obras de arte e de obras de pensamento exigem tempo e hoje a velocidade abole todo o trabalho de criação. Elas exigem paciência e silêncio. A maneira pela qual a grande maioria lida com os novos meios é suspeita. A relação entre a suposta consciência e o objeto apresentado é feita sem a mediação do pensamento, ou melhor, sem o tempo que todo pensamento pede. A relação entre a suposta consciência e a coisa apresentada leva a certezas simples e imediatas. Os clássicos citam sempre uma velha máxima: 'Eu via, mas não sabia o que via'. Ver (ou ler) apenas não basta, é preciso tempo para pensar o que se leu e se viu", enfatiza ele, que ao longo dos 30 anos de conferências que idealizou (a partir de 2006, Ciclo Mutações) escreveu mais de 800 ensaios, todos publicados em livros.


"Estamos sendo comandados por formas de relacionamento com o mundo, sem pensamento e sem saber. Não se sabe o que se lê e não exagero quando digo isso. Li há pouco uma matéria que me impressionou muito. Como se não bastasse a rapidez e a volatilidade do mundo em que vivemos, surge agora a criação de aplicativos para acelerar não só os programas de TV, mas também a leitura, o que os criadores dessa coisa esquisita chamam de 'smart speed', que acelera 1,5 vez a velocidade do áudio. 'Cortar pausa entre palavras', como propõe a nova forma de leitura, é destruir o sentido de cada palavra: agindo assim, jamais vamos dar sentido aos conceitos de liberdade, preguiça, silêncio, prosa, mundo, substância, pensamento, espaço, tempo, memória, vida, etc.", conclui o filósofo.

A CONCORRÊNCIA
É comum elegermos os celulares e as redes sociais como concorrentes do ócio e do silêncio. Em tempos de realidade mediada pela tecnologia, os dispositivos digitais criam para os indivíduos um "ecossistema" viável para sua existência virtual. Em entrevista, Adriano Duarte Rodrigues, professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa e um dos nomes mais importantes no estudo das ciências da comunicação de Portugal, alerta para o fato de se colocar as redes sociais e os celulares como vilões: "Tal postura deriva de uma das características da cultura, a tecnofobia, que é o nome que se dá ao medo dos dispositivos técnicos quando são inventados, antes de estarem assimilados na experiência das pessoas. Foi o que aconteceu com a invenção da escrita, da imprensa, do rádio e da televisão quando surgiram. As pessoas utilizam as redes sociais tanto para combaterem a solidão como para evitarem estar com os outros face a face. Como vê, não se pode generalizar".

Mirian Goldenberg, antropóloga e escritora, diz o seguinte sobre a tecnofobia: "Não gosto muito dessa expressão porque impede você de fazer qualquer tipo de crítica a um fenômeno social importante hoje, que é o uso dos celulares, da internet, do Facebook e do Instagram. O fato de eu ser crítica – e sou – não significa que tenho qualquer tipo de fobia à tecnologia". Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e colunista do jornal Folha de S.Paulo, ela destaca algo que pode ser observado na existência virtual ou concreta da população, o narcisismo. "As pessoas estão muito autorreferidas, elas já têm sua opinião e a defendem violentamente, têm pouca paciência para ouvir opiniões, mesmo que semelhantes. As pessoas estão voltadas para seu celular, falando via WhatsApp ou postando no Facebook, e, além de tudo, o que mais me deixa desanimada é ver a falta de interesse pelos outros."


Os resultados de uma realidade invadida pela tecnologia e de um campo comunicacional acelerado e causador de ruídos operam na contramão da paciência, do ócio e do silêncio. Novaes reflete e coloca questões a esse respeito: "O pensamento é uma paixão do intelecto, insensível às exigências apressadas. De que vale ter tanta informação se o leitor não tem tempo para combinação, compreensão e invenção? Como enfrentar o enigma do mundo sem recorrer ao silêncio, que dá sentido às palavras? O que resta no mundo da parlapatice e da busca da rapidez a não ser o legado de miséria intelectual? A conclusão a que chegamos é que resta pouca coisa, ou quase nada. A tarefa da linguagem, no sentido forte e originário do termo, não consiste em satisfazer necessidades de ordem prática. Não seria função da linguagem expressar o jogo supremo das mutações das ideias, formar pensamentos até então desconhecidos?".

Existe uma relação direta entre uma vida preenchida por atividades – que acabam invariavelmente nas redes sociais – e a rejeição do "tempo vazio", da solidão. Na opinião de Mirian, "essa verborragia é um retrato do nosso tempo. Pelo menos da grande maioria das pessoas que estão conectadas, mas também das que não estão; chega a ser um 'me, me, me', 'eu, eu, eu'. Sofremos uma influência muito grande dos Estados Unidos e de toda essa revolução cultural da internet, e nesse contexto o ócio é associado a um fracasso. O que você vai postar no Facebook se não está fazendo absolutamente nada, se você está simplesmente olhando para a paisagem ou dormindo? O que é complicado para a nossa cultura atual é viver o vazio. Você precisa sempre estar preenchendo o vazio com alguma coisa, que é para curtir. A curtida do Facebook não é só uma curtida, é uma forma de reconhecimento".

Para a antropóloga, autora de obras como Velho é lindo! e A bela velhice, à medida que as pessoas envelhecem, o tempo passa a ser um capital. "Até os 40 anos, você não tem a noção de que seu tempo vai embora, porque você acha que vai viver muito. Você gasta muito tempo para agradar, para satisfazer as demandas externas, por vaidade, porque você quer que todo mundo te ame. Ou então fazendo um trabalho que você odeia porque quer ganhar dinheiro. Seu tempo não é seu principal capital. Quando você começa a se aproximar dos 60 anos, pode ser antes, o tempo passa a ser uma riqueza. 'Antes o tempo era para os outros, agora o tempo é para mim. Sou a principal interessada no meu tempo.' Com essa revolução, o tempo passa a ser voltado para coisas que realmente dão significado a sua vida."

Embora sejamos seres sociais, a solidão é inerente ao ser humano e todos iremos desaparecer um dia, como salienta o professor português Adriano Duarte Rodrigues: "não devemos esquecer que, ao contrário das outras espécies, os seres humanos são animais solitários porque têm como horizonte fatal sua experiência solitária da morte. É essa experiência da solidão que alimenta as relações que as pessoas estabelecem umas com as outras e que define sua natureza social". Ainda que existam disputas simbólicas entre tecnologia, ócio e silêncio, esses elementos se fazem presentes na vida dos indivíduos. De maneira a subverter a técnica, a velocidade acelerada do digital e o "ser produtivo", vez ou outra pode ser agradável evocar a preguiça e o silêncio, e refletir sobre nosso bem-estar e sobre nossas relações com as pessoas e com o mundo.

quinta-feira, 4 de maio de 2017

Por que as galinhas são muito mais inteligentes do que você imagina

"Nós ainda não determinamos se as respostas comportamentais e fisiológicas que observamos nos pintinhos em situação de leve estresse indicam uma resposta emocional ou são apenas uma reação ao estímulo."

Se for comprovado que as galinhas demonstram empatia quando outras aves estão em situação de estresse, isso pode levantar questões sérias a respeito de como os frangos são mantidos em criadouros.

"Há uma série de situações em que animais em criação são expostos a visões, barulhos e cheiros de outros demonstrando dor e estresse", disse Edgar. "É importante determinar se o seu bem-estar é reduzido nesses momentos."

Marino também acredita que esteja na hora de discutir essas questões.

"A percepção de galinhas (como seres ignorantes) é motivada em parte pela tendência em diminuir sua inteligência e sensibilidade porque as pessoas as comem", diz ela.

A desconfortável verdade sobre galinhas é que elas são mais avançadas cognitivamente do que muitas pessoas pensam. Contudo, ainda não se sabe se os consumidores vão mudar seus hábitos alimentares por causa dessa informação.

quarta-feira, 12 de abril de 2017

'Despreparada para a era digital, a democracia está sendo destruída'

Quando Martin Hilbert calcula o volume de informação que há no mundo, causa espanto. Quando explica as mudanças no conceito de privacidade, abala. E quando reflete sobre o impacto disso tudo sobre os regimes democráticos, preocupa.

"Isso vai muito mal", adverte Hilbert, alemão de 39 anos, doutor em Comunicação, Economia e Ciências Sociais, e que investiga a disponibilidade de informação no mundo contemporâneo.

Segundo o professor da Universidade da Califórnia e assessor de tecnologia da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, o fluxo de dados entre cidadãos e governantes pode nos levar a uma "ditadura da informação", algo imaginado pelo escritor George Orwell no livro 1984.

Vivemos em um mundo onde políticos podem usar a tecnología para mudar mentes, operadoras de telefonia celular podem prever nossa localização e algoritmos das redes sociais conseguem decifrar nossa personalidade melhor do que nossos parceiros, afirma.

Com 250 'likes'; o algoritmo do Facebook pode prever sua personalidade melhor que seu parceiro

Hilbert conversou com a BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC, sobre a eliminação de proteções à privacidade online nos EUA, onde uma decisão recente do Congresso, aprovada pelo presidente Donald Trump, facilitará a venda de informação de clientes por empresas provedoras de internet.

Confira os principais trechos da entrevista:


http://www.bbc.com/portuguese/geral-39535650

quinta-feira, 2 de março de 2017

Entrevista com De Masi


O sonho global do Brasil corresponde a se tornar uma nação capaz de dar um grande modelo de vida ao mundo. A sociedade pós-industrial, diferentemente das precedentes, é sem modelo. O Brasil há 500 anos vem imitando a Europa e os EUA. E não tem que copiar. É obrigado a criar um modelo. 

O Brasil é um pouco infantil. Porque no fim de 2014 Lula era um grande personagem e Dilma também. Passado 2014, Lula é um delinquente e Dilma também. Essa transição foi rápida, uma transição infantil. Não foi madura.

Por quê [isso ocorreu]? Não sei. Olhando da Europa, lembro que durante o período de Lula o Brasil era feliz. Ele era um mito, as pessoas choravam diante dele. Dilma era um mito também no primeiro mandato. Porém em dois meses Dilma passa a ser odiada. Quem olha de fora não entende. Só um povo infantil faria uma coisa dessa.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Tocqueville: o despotismo moderno...

Se tento imaginar o despotismo moderno, vejo uma multidão desmedida de seres parecidos e iguais, que dão voltas em torno de si mesmos, a fim de proporcionar-se pesquenos e mesquinhos prazeres com os quais satisfazem suas almas. Cada um deles é como um estrangeiro em relação aos demais. Os seus filhos e os seus poucos amigos constituem para ele toda a humanidade. O resto dos cidadãos está ali, ao lado dele, mas ele não os vê; vive somente para si e em si. Se existe ainda uma família, já não existe a pátria.

Acima dessa multidão vejo alçar-se um imenso poder tutelar, que sozinho ocupa-se em assegurar aos súditos o bem-estar e em zelar pela sua sorte. É absoluto, minucioso, metódico e até mesmo comedido. Pareceria com a autoridade paterna se tivesse como objetivo, como aquela, a preparação dos homens á virilidade. Mas, pelo contrário, busca somente mantê-los numa infância perpétua". 439

DE MASI, Domênico. Criatividade e grupos criativos. Rio de Janeiro: Sextante, 2003. 795 p.

 

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Big Data e a psicologia baseada em dados

Em 9 de novembro, por volta das 8h30, Michal Kosinski acordou no Hotel Sunnehus, em Zurique. O pesquisador de 34 anos foi palestrar no Instituto Federal Suíço de Tecnologia sobre os perigos do Big Data e da revolução digital. Kosinski dá palestras constantemente sobre esses temas no mundo inteiro. Ele é especialista em psicometria, um ramo da psicologia que lida com dados. Naquela manhã, quando ele ligou a TV, viu a bomba: contrariando previsões dos principais estatísticos do país, Donald J. Trump havia sido eleito presidente dos Estados Unidos.

No mesmo dia, uma empresa britânica ainda pouco conhecida com sede em Londres enviou um comunicado à imprensa: "Estamos muito felizes que nosso método revolucionário de comunicação baseada em dados tenha desempenhado um papel tão importante na vitória extraordinária do presidente eleito Trump", disse Alexander James Ashburner Nix, britânico, 41 anos, e CEO da Cambridge Analytica. Ele sempre aparece em público com ternos bem cortados e óculos de grife, com o cabelo loiro penteado para trás. E a sua empresa não era integrante apenas da campanha online de Trump, mas também do Brexit.

Desses três personagens – o reflexivo Kosinski, o cuidadosamente vestido Nix e o sorridente Trump – um deles permitiu a revolução digital, um deles executou e um outro se beneficiou.

Big Data e a psicologia baseada em dados

Psicometria

Psicometria é base de nova estratégia eleitoral

Qualquer pessoa que não tenha passado os últimos cinco anos vivendo em outro planeta já ouviu falar no termo Big Data. Ele significa essencialmente que tudo o que fazemos, online e offline, deixa vestígios digitais. Cada compra que fazemos com nossos cartões, cada busca que digitamos no Google, a cada lugar que vamos com o celular no bolso e cada curtida, tudo é armazenada – especialmente as curtidas. Por muito tempo, não estava claro como esses dados poderiam ser usados, exceto, talvez, ver anúncios de remédios de pressão logo depois de pesquisar "como reduzir a pressão arterial" no Google.

Em 9 de novembro, ficou claro que é possível usar o Big Data para algo muito maior. A empresa por trás da campanha on-line de Trump – a mesma empresa que trabalhou para a Leave.EU no começo do Brexit – era uma empresa de Big Data: a Cambridge Analytica.

Para entender o resultado da eleição e como a comunicação política pode funcionar no futuro, é preciso começar com um incidente estranho na Universidade de Cambridge em 2014, no Centro de Psicometria de Kosinski.

Psicometria, às vezes também chamada de psicografia, centra-se na medição de traços psicológicos, como a personalidade. Na década de 1980, duas equipes de psicólogos desenvolveram um modelo que buscava avaliar pessoas com base em cinco traços de personalidade – o modelo foi chamado de Big Five: abertura (a novas experiências), consenciosidade (perfeccionismo), extroversão (sociabilidade), condescendência (cooperatividade) e neuroticismo (temperamento). Com base nessas dimensões – conhecidas pela sigla em inglês OCEAN – é possível fazer uma avaliação relativamente precisa de qualquer pessoa. Isso inclui necessidades e medos e como eles devem se comportar. O Big Five tornou-se a técnica padrão de psicometria. Mas, por muito tempo, o problema com essa abordagem foi a coleta de dados. Isso porque era preciso preencher um questionário complicado com informações muito pessoais. Então veio a internet. E o Facebook. E Kosinski.

Michal Kosinski

Michal Kosinski co-criou método de psicometria via dados do Facebook

Michal Kosinski foi estudante em Varsóvia quando sua vida tomou uma nova direção em 2008. Ele foi aceito pela Universidade de Cambridge para fazer seu doutorado no Psychometrics Center, uma das instituições mais antigas do tipo em todo o mundo. Kosinski se juntou ao colega David Stillwell (hoje professor da Universidade de Cambridge) cerca de um ano depois de Stillwell ter lançado um pequeno aplicativo no Facebook, muito antes da rede social se tornar a gigante que é hoje. O app MyPersonality convencia usuários a preencher vários questionários psicométricos, incluindo um punhado de perguntas psicológicas do questionário Big Five ("entro em pânico facilmente", "contrario muito os outros"). Com base na avaliação, os usuários recebiam um "perfil de personalidade" – usando variáveis do Big Five – e a opção de compartilhar seus dados de perfil do Facebook com os pesquisadores.

Os seguidores de Lady Gaga eram provavelmente extrovertidos, enquanto aqueles que curtiam páginas de filosofia tendiam a ser introvertidos.

Kosinski esperava que algumas dezenas de colegas universitários preenchessem o questionário, mas, em pouco tempo, milhões de pessoas revelaram seus segredos mais íntimos. De repente, os dois estudantes de doutorado tiveram nas mãos um conjunto de dados gigante combinando pontuações psicométricas com perfis do Facebook prontos para coleta.

Deduções absurdamente confiáveis poderiam ser extraídas a partir de alguns poucos cliques online. Por exemplo, homens que curtiram a marca de cosméticos MAC eram ligeiramente mais propensos a serem gays. Por outro lado, um dos melhores indicadores para a heterossexualidade era curtir a página do Wu-Tang Clan. Os seguidores de Lady Gaga eram provavelmente extrovertidos, enquanto aqueles que curtiam páginas de filosofia tendiam a ser introvertidos. Embora essas informações sozinhas não tenham força para produzir uma previsão confiável, dezenas, centenas ou milhares de dados individuais combinados resultam em previsões altamente precisas.

Kosinski e sua equipe aprimoraram incansavelmente seus modelos. Em 2012, Kosinski provou que, com base em uma média de 68 likes do Facebook por usuário, era possível prever sua cor da pele (95% de precisão), sua orientação sexual (88%) e sua filiação aos partidos Democrata ou Republicano (85%). Mas, ele não parou por aí. Inteligência, afiliação religiosa, bem como uso de álcool, cigarro e drogas, tudo poderia ser determinado. Com esses dados era até possível deduzir se os pais de alguém eram divorciados.

A capacidade de prever a resposta de alguém era a principal demonstração de força do modelo. Kosinski continuou a trabalhar incansavelmente e, em pouco tempo, seu mecanismo já era melhor do que psicólogos para avaliar pessoas apenas com base em 10 curtidas de Facebook. 70 curtidas eram suficientes para saber mais até do que os amigos de alguém, 150 mais do que os pais. Para conhecer uma pessoa mais do que o seu parceiro, bastavam 300 curtidas. Com mais likes do que isso, era possível conhecer mais até do que a própria pessoa sabia sobre si. No dia em que Kosinski publicou essas descobertas, recebeu dois telefonemas. Uma ameaça de processo judicial e uma oferta de emprego. Ambas do Facebook.

Um verdadeiro 'Google de pessoas'

Big Data

O Big Data tem papel principal na estratégia política da nova década

Apenas algumas semanas depois, as curtidas se tornaram privadas por padrão no Facebook. Antes disso, a configuração normal permitia que qualquer pessoa na internet pudesse ver seus likes. Mas isso não era um obstáculo para os colecionadores de dados: enquanto Kosinski sempre pedia o consentimento dos usuários do Facebook, muitos aplicativos e questionários on-line hoje exigem acesso a dados privados como pré-condição para a realização de testes de personalidade. Qualquer pessoa que queira avaliar a si mesmo com base nos likes do Facebook pode fazer isso por meio do site de Kosinski, e depois comparar os seus resultados com os de um questionário OCEAN clássico, como o do Centro de Psicometria de Cambridge.

O smartphone é um vasto questionário psicológico preenchido constantemente, consciente e inconscientemente.

Mas não se tratava apenas de likes ou mesmo de Facebook: Kosinski e sua equipe agora podiam atribuir valores Big Five baseados simplesmente em quantas fotos de perfil uma pessoa tinha no Facebook, ou quantos contatos tinham (um bom indicador de extroversão). Mas muita coisa é revelada até quando se está offline. O sensor de movimento do celular diz a velocidade e para onde o usuário vai todos os dias. A informação pode ser usada para avaliar instabilidade emocional. O smartphone é um vasto questionário psicológico preenchido a toda hora, consciente e inconscientemente.

No entanto, acima de tudo, essa metodologia também funciona no sentido inverso: não só os perfis psicológicos podem ser criados a partir de seus dados, mas essas informações podem ser usadas ao contrário para procurar perfis específicos: todos os pais ansiosos, todos que sentem raiva e os introvertidos, por exemplo – ou todos os democratas indecisos. Essencialmente, o que Kosinski havia inventado era uma espécie de motor de busca de pessoas. Ele começou a reconhecer o potencial, mas também o perigo inerente de seu trabalho.

Para ele, a internet sempre parecia um presente dos céus. O que ele realmente queria era dar algo de volta. Os dados podem ser copiados, então por que não beneficiar o bem comum? Foi o espírito de toda uma geração, o início de uma nova era que transcendeu as limitações do mundo físico. Mas o que aconteceria, se perguntou Kosinski, se alguém abusasse de seu motor de busca de pessoas para manipulá-las? Ele começou a adicionar advertências à maioria de seu trabalho científico. "Pode representar uma ameaça ao bem-estar, à liberdade, ou mesmo à vida de um indivíduo", dizia um dos alertas. Mas, ninguém parecia entender o que ele queria dizer.

Nas mãos erradas

Cambridge Analytica trump

Cambridge Analytica é uma empresa contratada por Trump

Na mesma época, no início de 2014, Kosinski foi abordado por um jovem professor assistente no departamento de psicologia chamado Aleksandr Kogan. Ele disse que estava a mando de uma empresa interessada no método de Kosinski, e queria acessar o banco de dados MyPersonality. Kogan não tinha permissão de revelar a finalidade, pois era tudo secreto.

No início, Kosinski e sua equipe consideraram aceitar a oferta, que traria muito dinheiro para o instituto, mas então o pesquisador hesitou. Kosinski lembra que foi aí que Kogan revelou o nome da empresa: SCL, ou Strategic Communication Laboratories (Laboratório de Comunicação Estratégica, em português). Kosinski pesquisou a empresa: "[Somos] uma grande agência de gestão eleitoral", diz o site da empresa. A SCL vende marketing baseado em modelagem psicológica. Um de seus principais focos: influenciar eleições. Influenciar eleições? Perturbado, Kosinski navegou pelo site. Que tipo de empresa era essa? E o que essas pessoas estavam planejando?

O que Kosinski não sabia na época: a SCL é a mãe de um grupo de empresas. Os verdadeiros donos da SCL e outras empresas não são conhecidos graças a uma estrutura corporativa complicada, muito parecida com as Company Houses do Reino Unido, com o registro de empresas de Delaware e com os Panama Papers. Algumas das filiais da SCL se envolveram em eleições na Ucrânia e na Nigéria, ajudaram o monarca do Nepal contra os rebeldes, e desenvolveram métodos para a OTAN para influenciar cidadãos da Europa Oriental e do Afeganistão. Em 2013, a SCL abriu uma nova empresa para participar das eleições nos EUA: Cambridge Analytica.

Kosinski não sabia nada sobre isso, mas tinha um mau pressentimento. "A coisa toda começou a cheirar mal", ele lembra. Pesquisando mais, ele descobriu que Aleksandr Kogan havia registrado secretamente uma empresa ligada à SCL. De acordo com um artigo de dezembro de 2015 no The Guardian e com documentos internos da empresa nas mãos da Das Magazin, a SCL havia entrado em contato com o método de Kosinski por intermédio de Kogan.

Kosinski começou a suspeitar que a empresa de Kogan poderia ter copiado a ferramenta de análise de Big Five baseada em likes do Facebook, a fim de vendê-la para a Cambridge Analytica. Ele imediatamente interrompeu o contato com Kogan e informou o diretor do instituto, provocando um complicado conflito dentro da universidade. O instituto estava preocupado com a reputação da entidade. Aleksandr Kogan mudou-se para Singapura, casou-se e mudou seu nome para Dr. Spectre. Michal Kosinski terminou seu doutorado, conseguiu uma oferta de trabalho em Stanford e se mudou para os EUA.

Sr. Brexit

Brexit Trump

Trump e Brexit têm mais em comum do que se imagina

Não houve turbulências por cerca de um ano. Então, em novembro de 2015, a Leave.EU, a campanha mais radical pelo Brexit, apoiada por Nigel Farage, anunciou a contratação de uma empresa de Big Data para ajudar na campanha on-line: Cambridge Analytica. O principal produto da empresa: um inovador marketing político, baseado em microsegmentação, para avaliar a personalidade das pessoas a partir de pegadas digitais, tudo baseado no modelo OCEAN.

Após o resultado do Brexit, amigos e conhecidos escreveram para ele: olhe o que você fez.

Kosinski passou a receber e-mails perguntando o que ele tinha a ver com aquilo – as palavras Cambridge, personalidade e análise imediatamente fizeram muitas pessoas pensarem em Kosinski. Foi a primeira vez que ele ouviu falar da empresa, que teria ganhado o nome porque seus primeiros funcionários tinham sido pesquisadores da Universidade de Cambridge. Horrorizado, ele olhou para o site. Sua metodologia tinha mesmo sido usada em larga escala para fins políticos?

Após o resultado do Brexit, amigos e conhecidos escreveram para ele: "olhe o que você fez". Por toda parte, Kosinski era obrigado a explicar que não tinha nada a ver com essa empresa. Na verdade, até hoje, ainda não está claro até que ponto a Cambridge Analytica esteve envolvida na campanha pelo Brexit. A empresa não falou publicamente sobre isso.

Por alguns meses, as coisas ficaram relativamente calmas. Então, em 19 de setembro de 2016, pouco mais de um mês antes das eleições dos EUA, os riffs de "Bad Moon Rising" do Creedence Clearwater Revival encheram o corredor azul-escuro do Grand Hyatt, em Nova York. A Cúpula de Concordia é uma espécie de Fórum Econômico Mundial em miniatura. Foram convidados líderes do mundo todo, entre eles o presidente suíço Johann Schneider-Ammann. "Por favor, deem as boas-vindas a Alexander Nix, diretor executivo da Cambridge Analytica", anuncia uma voz feminina suave. Um homem magro em terno preto caminha até o palco. Todos se calam. Muitos já sabem que aquele é o novo encarregado da estratégia digital de Trump.

Algumas semanas antes, Trump tinha tuitado, de um jeito um tanto quanto enigmático, "logo você estará me chamando de Sr. Brexit". Analistas políticos notaram semelhanças entre a agenda de Trump e a do movimento de direita Brexit. Mas poucos tinham notado a conexão entre isso e a recente contratação da empresa de marketing Cambridge Analytica.

"Quase todas as mensagens publicadas por Trump foram baseadas em dados", disse o CEO da Cambridge Analytica, Alexander Nix.

A essa altura, a campanha digital de Trump havia consistido de mais ou menos uma pessoa: Brad Parscale, um empreendedor de marketing e fundador de startup fracassado que criou somente um site simples para Trump por US$ 1.500. Com 70 anos de idade, Trump não é nem um pouco "alfabetizado digitalmente" – não há sequer um computador no seu escritório. Sua assistente pessoal uma vez revelou que Trump não sabe nem mandar e-mails. Ela mesma o convenceu a ter um smartphone, um Galaxy S3 que ele gosta de usar para tuitar sem parar.

Hillary Clinton, por outro lado, dependia fortemente do legado do primeiro "presidente de mídias sociais", Barack Obama. Ela tinha as listas de endereços do Partido Democrata, trabalhou com os melhores analistas de dados como os do BlueLabs, e recebeu o apoio do Google e da DreamWorks. Quando foi anunciado em junho de 2016 que Trump havia contratado a Cambridge Analytica, os poderosos de Washington torceram o nariz. Estrangeiros vestidos em ternos de alfaiate que não entendem nada dos EUA e dos americanos? Sério?

"É meu privilégio falar hoje com vocês sobre o poder do Big Data e da psicografia no processo eleitoral". O logotipo da Cambridge Analytica – um cérebro composto de nós de rede, como um mapa, aparece atrás de Alexander Nix. "Há apenas 18 meses, o senador Cruz era um dos candidatos menos populares", explica o loiro com um sotaque britânico, algo que incomoda americanos. "Menos de 40% da população tinha ouvido falar dele", diz outro slide. A Cambridge Analytica tinha se envolvido na campanha eleitoral dos EUA quase dois anos antes, inicialmente por meio de uma consultoria para os republicanos Ben Carson e Ted Cruz. Esse último – e mais tarde Trump – foi financiado principalmente pelo multimilionário de software Robert Mercer, conhecido pela sua discrição. Juntamente com sua filha Rebekah, é tido como o maior investidor da Cambridge Analytica.

"Então, como Ted Cruz fez isso?". Até então, explica Nix, as campanhas eleitorais tinham sido organizadas com base em conceitos demográficos. "Uma ideia realmente ridícula, a ideia de que todas as mulheres devem receber a mesma mensagem por causa de seu sexo – ou todos os negros por conta de sua raça". O que Nix quis dizer é que, enquanto outras campanhas tinham lançado mão somente de demografia, a Cambridge Analytica estava usando a psicometria.

O EUA inteiro em análise psicográfica

Cambridge Analytica trump

Cambridge Analytica explica como usa Big Data e psicologia para conquistar eleitorado

Embora isso possa ser verdade, o papel da Cambridge Analytica dentro da campanha da Cruz é discutível. Em dezembro de 2015, a equipe do político de fato creditou seu crescente sucesso ao uso psicológico de dados e análises. Na publicação Advertising Age, membro da campanha disse que a Cambridge Analytica era "só uma ajuda a mais", mas considerou, mesmo assim, que sua modelagem de dados de eleitores era "excelente". A campanha iria pagar à empresa pelo menos US $ 5,8 milhões para ajudar a identificar eleitores nas convenções do estado de Iowa, nos quais Cruz venceu antes de cair fora da corrida pela Casa branca em maio de 2016.

O próximo slide de Nix mostrou cinco rostos, cada um correspondente a um perfil de personalidade. É o Big Five (ou o modelo OCEAN). "Em Cambridge, criamos um modelo que prevê a personalidade de cada adulto nos EUA". O salão é cativado na hora. De acordo com Nix, o sucesso do marketing da Cambridge Analytica baseia-se numa combinação de três elementos: ciência comportamental utilizando o modelo OCEAN; análise de Big Data; e segmentação de anúncios. A segmentação de anúncios é uma publicidade personalizada, alinhada com a maior precisão possível para corresponder à personalidade de alguém.

Nix explica abertamente como sua empresa faz isso. Em primeiro lugar, a Cambridge Analytica adquire dados pessoais de uma variedade de fontes diferentes, como registros de terras, dados automotivos, dados de compras, cartões de fidelidade, associações de clubes, revistas lidas, igrejas frequentadas. Nix exibe os logotipos de corretores de dados ativos globalmente como Acxiom e Experian – nos EUA, quase todos os dados pessoais estão à venda. Para saber onde mulheres judias moram, é possível simplesmente comprar essa informação, incluindo números de telefone. A Cambridge Analytica então agrega isso com dados online e os registros eleitorais do Partido Republicano e calcula um perfil de personalidade Big Five. Os traços digitais de repente se transformam em pessoas reais com medos, necessidades, interesses e endereços residenciais.

A metodologia parece bastante semelhante à que Michal Kosinski desenvolveu. A Cambridge Analytica também usa, segundo Nixa, "pesquisas em mídias sociais" e dados do Facebook. E a empresa faz exatamente o que Kosinski alertou: "Temos perfis de personalidade traçados para cada adulto nos Estados Unidos da América – cerca de 220 milhões de pessoas", diz Nix.

Ele mostra um print de tela. "Esse é um painel de dados que preparamos para a campanha de Ted Cruz". No centro, há um controle digital; à esquerda, diagramas; à direita, um mapa de Iowa, onde Cruz ganhou um número enrome de votos nas primárias. E no mapa há centenas de milhares de pequenos pontos vermelhos e azuis. Nix filtra os critérios: "Republicanos" – os pontos azuis desaparecem; "Ainda não convencidos" – mais pontos desaparecem; "Homens", e assim por diante. Finalmente, resta apenas um nome, incluindo idade, endereço, interesses, personalidade e orientação política. Agora basta que a Cambridge Analytica impacte essa pessoa com a propaganda política perfeita – e super segmentada.

Nix mostra como os eleitores categorizados psicologicamente podem ser abordados de maneira diferente, por exemplo, com base na 2ª Emenda (sobre o direito de porte de armas): "para uma audiência altamente neurótica, basta usar a ameaça de um roubo e a apólice de seguro de uma arma na mensagem". Na hora, uma imagem mostra a mão de um intruso esmagando uma janela. "Por outro lado, para um público que se preocupa com tradição, hábitos e família": outra imagem mostra um homem e uma criança de pé em um campo ao pôr do sol, ambos segurando armas, caçando patos.

Como manter os eleitores de Hillary longe das urnas

As absurdas inconsistências de Trump, algo muito criticado e resultante de uma série de mensagens contraditórias postadas online, de repente se tornaram seu grande trunfo. Ama mensagem diferente para cada eleitor. A noção de que Trump atuou como um algoritmo perfeitamente oportunista segundo reações do público é algo que a matemática Cathy O'Neil observou em agosto de 2016.

Posts patrocinados pelo Facebook que só podem ser vistos por usuários com perfis específicos incluíam vídeos dirigidos a afroamericanos nos quais Hillary Clinton se refere aos negros como "predadores".

"Quase todas as mensagens publicadas por Trump foram baseadas em dados", disse o CEO da Cambridge Analytica, Alexander Nix. No dia do terceiro debate presidencial entre Trump e Clinton, a equipe de Trump testou 175 mil variações de anúncios diferentes para seus argumentos. O objetivo era encontrar as versões corretas, principalmente por meio do Facebook. As mensagens diferiam na maior parte apenas em detalhes microscópicos, a fim de atingir os públicos de forma infalível psicologicamente: títulos, cores e legendas diferentes, com foto ou com vídeo. Esse nível de detalhamento visa atingir os menores públicos possíveis, explica Nix. "Nós podemos direcionar os anúncios para pequenos vilarejos ou blocos de apartamentos. OU até mesmo para pessoas individualmente".

No distrito de Little Haiti, em Miami, a campanha de Trump divulgou notícias sobre o fracasso da Fundação Clinton após o terremoto no Haiti. O objetivo era garantir que potenciais eleitores de Clinton (parte da esquerda, negros e mulheres jovens) "suprimissem". Um membro de campanha disse à Bloomberg semanas antes da eleição. Posts patrocinados pelo Facebook que só podem ser vistos por usuários com perfis específicos incluíam, por exemplo, vídeos dirigidos a afroamericanos nos quais Hillary Clinton se refere aos negros como "predadores".

Nix conclui sua palestra na Cúpula de Concordia afirmando que a publicidade tradicional está morta. "Meus filhos certamente nunca, nunca vão entender esse conceito de comunicação de massa". E, antes de deixar o palco, ele anunciou que, desde que Cruz havia deixado a disputa, a empresa estava trabalhando para um dos candidatos presidenciais restantes.

Trump apostou alto

trump

Trump investiu US$ 15 milhões em pesquisas da Cambridge Analytica

Era impossível saber àquela altura até os americanos eram alvos das tropas digitais de Trump. Eles atacavam menos na TV convencional e mais com mensagens personalizadas nas mídias sociais. A equipe de Clinton pensava que estava na liderança, com base em projeções demográficas. Ao mesmo tempo, a jornalista da Bloomberg Sasha Issenberg ficou surpresa ao notar em uma visita a San Antonio – onde estava baseada a equipe de campanha digital de Trump – que uma "segunda sede" estava sendo criada. O pessoal da Cambridge Analytica, aparentemente apenas uma dúzia de pessoas, recebeu US$ 100 mil de Trump em julho, US$ 250 mil em agosto e US$ 5 milhões em setembro.

De acordo com Nix, a empresa ganhou mais de US$ 15 milhões no total. Nos EUA, a empresa se beneficia de leis muito brandas sobre divulgação de dados pessoais. Enquanto na Europa dados de usuários só podem ser obtidos se os donos permitirem, nos EUA é o contrário. A não ser que um usuário diga "não", todos os dados podem ser aproveitados por empresas de diversos ramos.

As medidas foram radicais. Em julho de 2016, a equipe de Trump começou a usar um aplicativo para identificar visões políticas e personalidades. O programa foi criado pela mesma empresa contratada pelos políticos do Brexit. O pessoal de Trump só batia na porta quem o aplicativo classificava como receptivo às mensagens do candidato. Os membros da campanha iam preparados com guias de conversas adaptadas para o tipo de personalidade dos residentes. Após cada visita, eles alimentavam o app com as reações das pessoas, e os novos dados iam direto para os paineis da campanha de Trump.

Isso não chega a ser novidade. Os democratas fizeram coisa parecida, mas não há nenhuma evidência de que tenham lançado mão de perfis psicométricos. A Cambridge Analytica, entretanto, dividiu a população dos EUA em 32 tipos de personalidade, e focou apenas em 17 estados. E, assim como Kosinski descobriu que os homens que gostam de cosméticos MAC são ligeiramente mais propensos a serem gays, a empresa descobriu que a preferência por carros fabricados nos EUA era uma grande pista para um potencial eleitor de Trump. Entre outras coisas, essas descobertas agora mostravam para a equipe de Trump quais e onde certas mensagens funcionavam melhor. A decisão de focar em Michigan e Wisconsin nas últimas semanas da campanha veio da análise de dados. O candidato se tornou o instrumento para implementar um grande modelo de dados.

O que vem pela frente?

Mas, até que ponto os métodos psicométricos influenciaram o resultado da eleição? Questionada, a Cambridge Analytica não estava disposta a fornecer qualquer prova da eficácia da sua campanha. E é bem possível que a pergunta seja impossível de responder.

Mas, há alguns indícios fortes. Há a ascensão surpreendente de Ted Cruz durante as primárias. Também houve um aumento grande no número de eleitores de áreas rurais. Houve o declínio na presença de negros nos primeiros dias de votação. O gasto relativamente baixo de Trump pode ser explicado pela eficácia da publicidade baseada em perfis psicológicos. Ou simplesmente por ter investido muito mais em digital do na TV em comparação com Hillary. O Facebook provou ser a arma definitiva e o melhor militante, como explicou Nix e comentários de vários apoiadores de Trump.

Muitos alegaram que os estatísticos perderam a eleição porque suas previsões erraram o alvo. Mas e se os estatísticos ajudaram a vencer a eleição, mas apenas que usou o novo método? É uma ironia da história que Trump, que muitas vezes resmungou sobre pesquisas científica, tenham usado uma estratégia altamente científica em sua campanha.

Theresa May trump

Theresa May, primeira-ministra britânica, também teria se beneficiado do mesmo tipo de pesquisa que Trump

Outro grande vencedor é a Cambridge Analytica. Embora a empresa não comente, há supostas negociações em andamento com a primeira-ministra do Reino Unido, Theresa May. Alexander Nix afirma ainda que está reunindo clientes em todo o mundo, incluindo Suíça, Alemanha e Austrália. Sua companhia está viajando atualmente para conferências europeias que usam a empresa como case de sucesso nos Estados Unidos. Em 2017, três países centrais da União Europeia têm eleições com partidos populistas que ressurgem das cinzas: França, Holanda e Alemanha. Os sucessos eleitorais vêm em momento oportuno, quando a empresa se prepara para entrar na publicidade comercial.

Kosinski observou tudo isso em seu escritório em Stanford. Após a eleição dos EUA, a universidade está em tumulto. Kosinski está reagindo a tudo isso a melhor arma para um pesquisador: uma pesquisa científica. Junto com sua colega de pesquisa Sandra Matz, ele realizou uma série de testes, que em breve serão publicados. Os resultados iniciais são alarmantes. O estudo mostra a eficácia da segmentação de personalidade. Segundo novos levantamentos, profissionais de marketing podem atrair até 63% mais cliques e 1.400 mais conversões em campanhas no Facebook ao combinar produtos e mensagens com a personalidade dos consumidores. Eles ainda demonstram a escalabilidade do método, mostrando que a maioria das páginas de produtos ou marcas no Facebook são afetadas pela personalidade. Um grande número de consumidores podem ser segmentados com precisão a partir de uma única página do Facebook.

Após a publicação original deste artigo na alemã Das magazine, a Cambridge Analytica emitiu em comunicado. "A Cambridge Analytica não usa dados do Facebook, não teve relações com o Dr. Michal Kosinski, não subcontrata pesquisas e não usa a mesma metodologia. A psicografia praticamente não foi usada. A Cambridge Analytica não trabalhou de forma alguma para desencorajar norte-americanos a votarem nas eleições presidenciais. Nossos esforços foram direcionados unicamente para aumentar o número de eleitores".

O mundo foi virado de cabeça para baixo. A Grã-Bretanha está deixando a União Europeia, Donald Trump é presidente dos Estados Unidos da América. Kosinski queria alertar contra os perigos do direcionamento psicológico na política, mas está novamente recebendo e-mails ameaçadores. "Não", diz Kosinski, calmamente e balançando a cabeça. "Não é minha culpa, eu não construí a bomba, só mostrei ao mundo que ela existe".

O artigo original sobre a pesquisa do Dr. Michal Kosinski apareceu originalmente na Das Magazin, em dezembro. A versão em inglês deste artigo foi publicada antes no Motherboard.



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