Um livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive. (Padre Antônio Vieira)

domingo, 15 de janeiro de 2012

Sobre a paz

Aos espécimes sub-humanos desta bendita era científica, o ritual e a adoração vinculados à arte de curar, como se praticava em Epidauro, parecem pura charlatanice. No nosso mundo, os cegos guiam os cegos e os doentes vão aos doentes para se curar. [...] O culto médico funciona mais ou menos como o Ministério da Guerra - os triunfos anunciados são camuflagens para esconder a morte e o desastre. [...] O homen só precisa de paz paa viver. [...] O homem não começa a viver por triunfar sobre seu inimigo [...] A alegria de viver vem através da paz, que não é estática, mas dinâmica. Nenhum homem pode dizer que sabe o que é alegria antes de ter experimentado a paz. E sem alegria não há vida, mesmo que você tenha uma dúzia de carros, seis mordomos, um castelo, uma capela privada e um abrigo anti-aéreo. Nossas doenças são nossas ligações, sejam elas hábitos, ideologias, ideais, princípios, posses, fobias, medos, cultos, religiões [...] Um bom salário pode ser uma doença igual a um mau salário; o lazer pode ser uma doença tão grave quanto o trabalho. Ao que quer que a gente se apegue, mesmo esperança ou fé, pode ser a doença que vai nos liquidar. A rendição tem que ser absoluta: se você se agarrar à mínima migalha, estará nutrindo o germe que vai te devorar. Quanto a agarrar-se a Deus, ele nos abandonou há tempos, exatamente para que descobríssemos a alegria de alcançar o Bem através dos nossos próprios esforços. Todo esse barulho que se faz por aí, toda essa súplica insistente pela paz, que vai crescer à medida que a dor e a miséria crescerem, não levará a nada. [...] Será que as pessoas imaginam que a paz é algo que pode ser estocado, como milho ou trigo? [...] Ouço as pessoas falarem de paz, e seus semblantes estão carregados de raiva, ou ódio, ou desprezo, ou orgulho e arrogância. Há pessoas que querem lutar para obter a paz. [...] O que comanda o mundo é o coração, não o cérebro. [...] Em Epidauro, na quietude, na grande paz que se abateu sobre mim, ouvi bater o coração do mundo. Sei qual é a cura: é desistir, renunciar, se render, para que nossos pequenos corações batam em uníssono com o grande coração do mundo. p.84/86


MILLER, Henry. O colosso de Marússia. Tradução de Cora Rónai. Porto Alegre: L&PM, 2003. 254 p.

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