Naquele momento, eu me alegrei em ser livre, livre de bens materiais, de qualquer vínculo, livre de inveja, de medo e malícia. Poderia ter passado tranquilamente de um sonho a outro, devendo nada, lamentando nada, desejando nada. Nunca estive mais certo de que a vida e a morte são uma só e que nenhuma delas pode ser apreciada ou alcançada se a outra não estiver presente. p. 29
A falta de jornais, a falta de notícias sobre o que os homens estão fazendo nas diferentes partes do mundo para tornar a vida mais agradável ou mais desagradável é a maior felicidade. Se nós pudéssemos simplesmente eleiminar os jornais, tenho certeza de que a humanidade faria um grande progresso. Os jornais alimentam mentiras, ódios, avareza, inveja, suspeita, medo, malícia. Nós não precisamos da verdade da forma como ela nos é servida os jornais. Nós precisamos de paz, solidão e preguiça. Se nós pudéssemos entrar todos em greve e honestamente nos desligarmos do interesse no que o vizinho está fazendo, teríamos um novo tipo de vida. Nós podemos sobreviver sem telefones, rádios, jornais, sem máquinas de espécie alguma, sem fábricas, sem moinhos, sem minas, sem explosivos, sem navios de guerra, sem políticos, sem advogados, sem alimentos enlatados, sem
gadgets, até mesmo sem lâminas de barbear, ou celofane, ou cigarros, ou dinheiro. Eu sei que isso é um sonho. As pessoas só batalham por melhores condições de trabalho, melhores salários, melhores oportunidades de se tornar algo que não são. p. 48-49
Que diferença faz para um homem cujo coração está cheio de luz, que tipo de roupas ele está usando? Quem as fez, ou se são do modelo anterior ou posterior à guerra? Eu já vi gregos andando pelas ruas com as roupas mais ridículas e abomináveis - chapéu de palha de 1900, colete de brocado com botões de madrepérola, casacão inglês, calças desbotadas, guarda-chuva estropiado, camiseta, pés descalços, cabelo revolto - um conjunto que mesmo um
kaffir desprezaria e, entretanto, afirmo sincera e deliberadamente que eu preferiria mil vezes ser este grego pobre do que um milionário americano. p. 56
Aos espécimes sub-humanos desta bendita era científica, o ritual e a adoração vinculados à arte de curar, como se praticava em Epidauro, parecem pura charlatanice. No nosso mundo, os cegos guiam os cegos e os doentes vão aos doentes para se curar. [...] O culto médico funciona mais ou menos como o Ministério da Guerra - os triunfos anunciados são camuflagens para esconder a morte e o desastre. [...] O homen só precisa de paz para viver. [...] O homem não começa a viver por triunfar sobre seu inimigo [...] A alegria de viver vem através da paz, que não é estática, mas dinâmica. Nenhum homem pode dizer que sabe o que é alegria antes de ter experimentado a paz. E sem alegria não há vida, mesmo que você tenha uma dúzia de carros, seis mordomos, um castelo, uma capela privada e um abrigo anti-aéreo. Nossas doenças são nossas ligações, sejam elas hábitos, ideologias, ideais, princípios, posses, fobias, medos, cultos, religiões [...] Um bom salário pode ser uma doença igual a um mau salário; o lazer pode ser uma doença tão grave quanto o trabalho. Ao que quer que a gente se apegue, mesmo esperança ou fé, pode ser a doença que vai nos liquidar. A rendição tem que ser absoluta: se você se agarrar à mínima migalha, estará nutrindo o germe que vai te devorar. Quanto a agarrar-se a Deus, ele nos abandonou há tempos, exatamente para que descobríssemos a alegria de alcançar o Bem através dos nossos próprios esforços. Todo esse barulho que se faz por aí, toda essa súplica insistente pela paz, que vai crescer à medida que a dor e a miséria crescerem, não levará a nada. [...] Será que as pessoas imaginam que a paz é algo que pode ser estocado, como milho ou trigo? [...] Ouço as pessoas falarem de paz, e seus semblantes estão carregados de raiva, ou ódio, ou desprezo, ou orgulho e arrogância. Há pessoas que querem lutar para obter a paz. [...] O que comanda o mundo é o coração, não o cérebro. [...] Em Epidauro, na quietude, na grande paz que se abateu sobre mim, ouvi bater o coração do mundo. Sei qual é a cura: é desistir, renunciar, se render, para que nossos pequenos corações batam em uníssono com o grande coração do mundo. p.84/86
O inimigo do homem não são seus germes, mas o próprio homem, com seu orgulho, sua arrogância, seus preconceitos, sua estupidez. [...] Cada um deve se rebelar, individualmente, contra um estilo de vida que não é seu. [...] Temos de abandonar as trincheiras que cavamos e nas quais nos escondemos e sair ao ar livre, braços erguidos na rendição de nossas posses. [...] Nós nos escravizamos a nós mesmos, através do nosso modo de viver mesquinho e fechado. [...] A vida exige que a gente ofereça mais - espírito, alma, inteligência, boa vontade. [...] A natureza conserta e restaura, só isso. É tarefa do homem acabar com o instinto homicida. p. 89-90
Nós nos tornamos nômades espirituais; tudo o que diz respeito à alma tem sido relegado a um plano inferior, atirado aos ventos sem qualquer consideração. p. 126
Descobri que viver criativamente significa viver cada vez menos egoisticamente, viver cada vez mais no mundo, identificando-se com ele e tentando influenciá-lo. Tenho a impressão, agora, de que a arte, como a religião, é só uma preparação, uma iniciação a um meio de vida. O objetivo é a liberação, a liberdade, o que quer dizer assumir liberdades cada vez maiores. Escrever, além do ponto de auto-realização, me parece vão e inútil. O domínio de qualquer forma de expressão artística deve conduzir, inevitavelmente, à expressão final - o domínio da vida. Neste campo, cada um está absolutamente só, enfrentando os próprios elementos da criação. [...] Se é bem sucedida, o mundo inteiro se modifica. [...] Dar e receber são, no fundo, uma coisa só. [...] Vivendo abertos, tornamo-nos transmissores; e assim, como um rio, experimentamos a sensação de viver ao máximo, correndo numa linha paralela à correnteza da vida, morrendo apenas para renascer como oceanos. p. 208-209.
A impressão mais profunda que a Grécia deixou em mim foi a de ser um país numa dimensão humana. [...] A Grécia é o lar dos deuses; eles podem ter morrido, mas a sua presença ainda se faz sentir. [...] tinham proporções humanas: foram criados pelo espírito do homem. [...] no mundo ocidental este vínculo entre o homem e a divindade foi rompido, o ceticismo e a paralisia que esta ruptura provocou na natureza humana são a chave para a destruição inevitável da nossa civilização. Se os homens deixam de acreditar que um dia serão deuses, transformam-se, certamente, em vermes. [...] Nenhuma nação pode gerar um novo meio de vida sem uma visão universal. [...] já aprendemos que todos os povos da terra estão interligados, mas ainda não conseguimos utilizar esta descoberta de forma inteligente. Vimos duas guerras mundiais e, sem dúvida, veremos uma terceira, talvez uma quarta, possivelmente outras mais. [...] O mundo deve se tornar, novamente, pequeno, como era o antigo mundo grego: suficiente pequeno para conter todo o mundo. Enquanto não houver lugar para o último dos homens, não haverá uma verdadeira sociedade humana. p. 237-238
E nunca encontrei um indivíduo mais humano do que Katsimbalis. Ao andar ao seu lado pelas ruas de Marússia, tive a sensação de estar pisando sobre a terra de uma forma inteiramente nova. A terra tornou-se mais íntima, mais viva, mais promissora. Ele falava muito do passado [...] mas nunca como de algo morto e esquecido, mas, antes, como de algo que trazemos em nós, algo que frutifica no presente e torna o futuro convidativo. Falava com igual reverência das coisas grandes e pequenas; nunca estava tão ocupado que não pudesse parar para pensar em alguma coisa que o atraísse; tinha um tempo infinito nas mãos, coisa que, por si mesma, já é a marca das grandes almas [...] há homens tão completos, tão ricos, que se dão tão inteiramente que, sempre que você se despede deles, torna-se irrelevante saber se essa despedida é por um dia ou para sempre. Eles não pedem nada de você, a não ser que você partilhe com eles a suprema alegria de viver. Nunca perguntam de que lado do muro você está, porque no mundo em que eles vivem não há muros. Fazem-se invulneráveis por, habitualmente, se exporem a todos os perigos. Seu heroísmo cresce à medida que revelam suas fraquezas. p. 240
MILLER, Henry.
O colosso de Marússia. Tradução de Cora Rónai. Porto Alegre: L&PM, 2003. 254 p.