Giddens, Anthony. O amor romântico e outras ligações. In: A transformação da intimidade: sexualidade, amor & erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993.
O AMOR ROMÂNTICO E OUTRAS LIGAÇÕES
"O Amor", observa Bronislaw Malinowski em seu estudo sobre habitantes da Ilha Trobriand, "é uma paixão, tanto para o melanésio quanto para o europeu, e atormenta a mente e o corpo em maior ou menor extensão; conduz muitos a um impasse, um escândalo ou uma tragédia; mais raramente, ilumina a vida e faz com que o coração se expanda e transborde de alegria".
Bronislaw Malinowski, The Sexual Life of Savages, London: Routledge, 1929, p. 69.
Numerosos exemplos de poesia de amor sobrevivem entre as relíquias do Antigo Egito, alguns remontando a antes de 1000 a.C. O amor é ali retratado como um esmagamento do eu, e, portanto, é semelhante a uma espécie de doença, embora também possua poderes ocultos...p. 47
Embora o uso secular da palavra "paixão" - distinto de sua utilização mais antiga, significando paixão religiosa - seja relativamente moderno, faz sentido considerar-se o amor apaixonado, amour passion, como a expressão de uma conexão genérica entre o amor e a ligação sexual. O amor apaixonado é marcado por uma urgência que o coloca à parte das rotinas da vida cotidiana, com a qual, na verdade, ele tende a se conflitar. O envolvimento emocional com o outro é invasivo - tão forte que pode levar o indivíduo, ou ambos os indivíduos, a ignorar as suas obrigações habituais. O amor apaixonado tem uma qualidade de encantamento que pode ser religiosa em seu fervor. Tudo no mundo parece de repente viçoso, embora talvez ao mesmo tempo não consiga captar o interesse do indivíduo que está tão fortemente ligado ao objeto do amor. O amor apaixonado é especificamente perturbador das relações pessoais, em um sentido semelhante ao do carisma; arranca o indivíduo das atividades mundanas e gera uma propensão às opções radicais e aos sacrifícios. Por esta razão, encarado sob o ponto de vista da ordem e do dever sociais, ele é perigoso. Dificilmente surpreende que o amor apaixonado não tenha sido em parte alguma reconhecido como uma base necessária ou suficiente para o casamento, e na maior parte das culturas tem sido refratário a ele. p. 48
O amor apaixonado é um fenômeno mais ou menos universal. Devo dizer que ele deveria ser diferenciado do amor romântico, muito mais culturalmente específico.
Casamento, sexualidade e amor romântico
Na Europa pré-moderna, a maior parte dos casamentos eram contraídos, não sobre o alicerce da atração sexual mútua, mas o da situação econômica. Entre os pobres, o casamento era um meio de organizar o trabalho agrário. Era impossível que uma vida caracterizada pelo trabalho árduo e contínuo conduzisse à paixão sexual. Tem sido relatado que, entre os camponeses da França e da Alemanha do século XVII, o beijo, a carícia e outras formas de afeição física associadas ao sexo eram raros entre os casais casados...p.49
Somente entre os grupos aristocráticos, a licenciosidade sexual era abertamente permitida entre as mulheres "respeitáveis". A liberdade sexual acompanha o poder e é uma expressão do poder; em certas épocas e locais, nas camadas aristocráticas, as mulheres eram suficientemente liberadas das exigências da reprodução e do trabalho rotineiro para poderem buscar o seu prazer sexual independente. p. 49
A diferenciação entre a sexualidade "casta" do casamento e o caráter erótico ou apaixonado dos casos extraconjugais era absolutamente comum entre outras aristocracias, além daquelas da Europa. (...) A idealização temporária do outro, típica do amor apaixonado, aqui se associou a um envolvimento mais permanente com o objeto do amor, e uma certa reflexividade já estava presente, mesmo anteriormente. p. 50
O amor romântico, que começou a marcar a sua presença a partir do final do século XVIII, utilizou tais ideais e incorporou elementos do amour passion, embora tenha-se tornado distinto deste. O amor romântico introduziu a ideia de uma narrativa para uma vida individual - fórmula que estendeu radicalmente a reflexividade do amor sublime. Contar uma história é um dos sentidos do "romance", mas esta história tornava-se agora individualizada, inserindo o eu e o outro em uma narrativa pessoal, sem ligação particular com os processos sociais mais amplos. O início do amor romântico coincidiu mais ou menos com a emergência da novela: a conexão era a forma narrativa recém-descoberta. p. 50
Nas ligações de amor romântico, o elemento do amor sublime tende a predominar sobre aquele do ardor sexual. A importância deste ponto dificilmente pode ser muito enfatizada. A ideia do amor romântico é, neste aspecto, tão historicamente rara quanto os traços que Max Weber encontrou associados na ética protestante. O amor rompe com a sexualidade, embora a abarque; a "virtude" começa a assumir um novo sentido para ambos os sexos, não mais significando apenas inocência, mas qualidades de caráter que distinguem a outra pessoa como "especial". p. 51
Frequentemente, considera-se que o amor romântico implica atração instantânea -"amor à primeira vista". Entretanto, na medida em que a atração imediata faz parte do amor romântico, ela tem de ser completamente separada das compulsões sexuais/eróticas do amor apaixonado. O "primeiro olhar" é uma atitude comunicativa, uma apreensão intuitiva das qualidades do outro. É um processo de atração por alguém que pode tornar a vida de outro alguém, digamos assim, "completa". p. 51
O gênero e o amor
(...) A imagem da "esposa e mãe" reforçou um modelo de "dois sexos" das atividades e dos sentimentos. As mulheres eram reconhecidas pelos homens como sendo diferentes, incompreensíveis - parte de um domínio estranho aos homens. A ideia de que cada sexo é um mistério para o outro é antiga, e tem sido representada de várias maneiras nas diferentes culturas. O elemento novo, aqui era a associação da maternidade com a feminilidade, como sendo qualidades da personalidade - qualidades estas que certamente estavam impregnadas de concepções bastante firmes da sexualidade feminina. p. 54
O consumo ávido de novelas e histórias românticas não era em qualquer sentido um testemunho de passividade. O indivíduo buscava no êxtase o que lhe era negado no mundo comum. Vista deste ângulo, a realidade das histórias românticas era uma expressão de fraqueza, uma incapacidade de se chegar a um acordo em a auto-identidade frustrada na vida social real. Mas a literatura romântica era (e ainda é hoje) também uma literatura de esperança, uma espécie de recusa. Frequentemente rejeitava a ideia da domesticidade estabelecida como único ideal proeminente. Em muitas histórias românticas, após um namoro com outros tipos de homens, a heroína descobre virtudes do indivíduo íntegro, sólido, que se torna um marido confiável. Entretanto, pelo menos com a mesma frequência, o verdadeiro herói é um brilhante aventureiro que se distingue por suas características exóticas e ignora a convenção em sua busca de uma vida errante. p. 55
O amour passion jamais foi uma força social genérica da maneira que tem sido o amor romântico, desde o final do século XVIII até períodos relativamente recentes. Juntamente com outras mudanças sociais, a difusão de ideias de amor romântico estava profundamente envolvida com transições importantes que afetaram o casamento e também outros contextos da vida pessoal. O amor romântico presume algum grau de autoquestionamento. Como eu me sinto em relação ao outro? Como o outro se sente a meu respeito? Será que os nossos sentimentos são "profundos" o bastante para suportar um envolvimento prolongado? Diferente do amour passion, que extirpa de modo irregular, o amor romântico desliga o indivíduo de situações sociais mais amplas de uma maneira diferente. Proporciona uma trajetória de vida prolongada, orientada para um futuro previsto, mas maleável; e cria uma "história compartilhada" que ajuda a separar o relacionamento conjugal de outros aspectos da organização familiar, conferindo-lhe uma prioridade especial. p. 56
Desde suas primeiras origens, o amor romântico suscita a questão da intimidade. Ela é incompatível com a luxúria, não tanto porque o ser amado é idealizado - embora esta seja parte da história -, mas porque presume uma comunicação psíquica, um encontro de almas que tem um caráter reparador. O outro, seja quem for, preenche um vazio que o indivíduo sequer necessariamente reconhece - até que a relação de amor seja iniciada. E este vazio tem diretamente a ver com a auto-identidade: em certo sentido, o indivíduo fragmentado torna-se inteiro. p.56
No amor romântico, a absorção pelo outro, típica do amour passion, está integrada na orientação característica da "busca". A busca é uma odisséia em que a auto-identidade espera a sua validação a partir da descoberta do outro. Possui um caráter ativo e, neste aspecto, o romance moderno contrasta com as histórias românticas medievais, em que a heroína em geral é relativamente passiva. p. 57
Se o ethos do amor romântico é simplesmente compreendido como o meio pelo qual uma mulher conhece o seu "príncipe", isso parece realmente superficial. Embora na literatura, como na vida, às vezes as coisas se passem deste modo, a conquista do coração do outro é na verdade um processo de criação e uma narrativa biográfica mútua. A heroína amansa, suaviza e modifica a masculinidade supostamente intratável do seu objeto amado, possibilitando que a afeição mútua transforme-se na principal diretriz de usas vidas juntos. p. 57
O caráter intrinsecamente subversivo da ideia do amor romântico foi durante muito tempo mantido sob controle pela associação do amor com o casamento e com a maternidade; e pela ideia de que o amor verdadeiro, uma vez encontrado, é para sempre. Quando o casamento, para a maioria da população, efetivamente era para sempre, a congruência estrutural entre o amor romântico e a parceria sexual estava bem delineada. O resultado pode, com frequência, ter sido anos de infelicidade, dada a conexão frágil entre o amor como fórmula para o casamento e as exigências para progredir posteriormente. Mas um casamento eficaz, ainda que não particularmente compensador, pode ser sustentado por uma divisão do trabalho entre os sexos, com o marido dominando o trabalho remunerado e a mulher, o trabalho doméstico. Podemos ver neste aspecto como o confinamento da sexualidade feminina ao casamento era importante como um símbolo da mulher "respeitável". Isto ao mesmo tempo permitia aos homens conservar distância do reino florescente da intimidade e mantinha a situação do casamento como um objetivo primário das mulheres. p. 58
Um livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive. (Padre Antônio Vieira)
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