Um livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive. (Padre Antônio Vieira)

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Hargreaves: o ensino na sociedade do conhecimento

Ensinar não é um espaço para retraídos, para os suscetíveis demais, para pessoas que se sintam mais à vontade com crianças dependentes do que com adultos independentes. É um trabalho para gente grande, que exige normas de gente grande sobre como trabalhar coletivamente. p. 44

A introspecção é uma arte em extinção. Ao se deparar com momentos a sós em seus carros, nas ruas ou na fila do supermercado, cada vez menos pessoas se dedicam à reflexão, e a maioria repassa suas mensagens no celular em busca de indícios de que alguém, em algum lugar, possa precisar delas ou desejá-las. p. 56

Um grande influxo de e-mails e mensagens no celular nos faz sentir necessários, mas também exigem respostas rápidas que nos levam a reagir, em vez de nos relacionar. O teórico da gestão Charles Handy observa que, “essas comunidades virtuais até podem ser divertidas, mas criam apenas uma ilusão de intimidade e um simulacro de comunidade”. Segundo o autor, elas não constituem um substituto para sentar-se à mesa, olhar as pessoas no rosto e desenvolver conversas reais. p. 56

A chamada sociedade do conhecimento afundou os jovens em uma cultura de “virtualidade real”, em que CDs, telefones celulares, computadores, discmen, vídeo games e a TV com muitos canais passam a ser sua realidade cada vez mais dominante. No mundo da tecnologia de entretenimento digital, segundo a música de Bruce Springsteen, “existem 57 canais e nada está passando”. A sociedade do conhecimento é, de muitas maneiras, mais uma sociedade do entretenimento na qual imagens fugazes, prazer instantâneo e pensamento mínimo fazem com que “nos divirtamos até morrer”. As emoções são extraídas desse mundo sedento de tempo, em que os relacionamentos se apoucam, e reinvestidas em coisas passíveis de consumo. As propagandas associam os automóveis à paixão e ao desejo, e os telefones celulares, à estimulação e ao deleite. p. 56

Na economia do conhecimento da qual o consumidor é o centro, para a maioria das pessoas, a opção está inversamente relacionada à significação. A globalização assemelhou muito as políticas econômicas das nações desenvolvidas. O novo trabalhismo britânico se confunde com o velho conservadorismo, democratas cada vez se diferenciam menos de republicanos. A guerra deflagrada contra populações pobres gera pouca discordância. A maioria das pessoa fica com muitas escolhas, mas apenas para a cor de seus carros, as opções de telefone celular ou a cobertura da pizza. Sendo assim, grande parte da exploração do conhecimento é de natureza gasosa, em que o estilo ainda prevalece sobre a substância e em que a maioria das pessoas pode escolher apenas as coisas supérfluas da vida, em que “tudo o que é sólido se desmancha no ar”. p. 56-57.

O sociólogo norte americano Richard Sennett afirma que uma das grandes ameaças da nova sociedade do conhecimento é a natureza fundamental do caráter humano. Em seu livro provocador, A corrosão do caráter: conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo, o autor examina como o caráter se concentra particularmente sobre o aspecto de longo prazo de nossa experiência emocional; ele se expressa na lealdade e no compromisso mútuo, ou por meio da busca de objetivos de longo prazo, ou ainda pela prática da gratificação posterior, para uma finalidade futura. p. 67

[...] sua mais profunda preocupação é não poder oferecer s substância de sua vida de trabalho como exemplo de como os filhos deveriam se conduzir eticamente. As qualidades do bom trabalho não são as qualidades do bom caráter. p. 69

Como proteger as relações familiares para que não sucumbam ao comportamento de curto prazo, ao reunionismo e, sobretudo, à fragilidade de lealdade e compromisso que marcam o local de trabalho moderno? p. 69

De que forma, em outras palavras, poderão elas escapar do que Christopher Lasch chamou de cultura do narcisismo, que surge de uma cultura de trabalho baseada na autopromoção, na mudança e na flexibilidade, que favorece a esperteza em detrimento da sabedoria, o rápido e o ligeiro sobre o firme e o justo, em que as crianças se tornam modelos de estilo de vida para seus pais, em vez de os pais serem exemplos morais para os filhos? p. 69

Essas convulsões tornam difícil para as famílias manter continuidades de solidariedade. Se a pressão dos salários e do tempo esgota as reservas emocionais da vida familiar, as crianças têm menos probabilidades de apreender os valores dos quais depende a sociedade como um todo. As que não aprendem confiar e como amar se transformam em adultos egoístas e agressivos. O resultado [...] é uma ordem social brutal e indiferente. p. 69

Os efeitos desestabilizadores do trabalho na economia industrial estavam relacionados à escassez, demandando longas jornadas e uma forte disposição de limitar e poupar. Na economia do conhecimento, esses efeitos desestabilizadores costumam ser de abundância. Como diz Ignatieff, “a abundância transforma a economia moral de uma sociedade ao favorecer valores baseados no consumir, em detrimento do poupar. p. 69

Na atual sociedade do conhecimento, poupar com segurança e firmeza para o futuro se substitui cada vez mais pela aposta pessoal no investimento mundial. Guias de muito sucesso sobre planejamento financeiro pessoal desprezam o ato de poupar como sendo o refúgio fora de moda daqueles que não têm espírito de aventura. p. 69-70.

A insegurança financeira é acompanhada pelo colapso da comunidade. Em lugar da comunidade em processo de definhamento, são oferecidas suas simulações comercializadas. Os sorrisos manufaturados são o principal atrativo de vendas da indústria de serviços, na qual as pessoas insistem em lhe desejar “bom dia”, apenas porque isso gera lucros para sua empresa. Em vez de prestar atenção umas às outras, pessoas ricas financeiramente, mas pobres em tempo, prestam atenção a si próprias, comprando a intimidade simulada de instrutores, orientadores, terapeutas, promotores de festas e personal trainers. p. 70

Francis Fukuyama define capital social como “um conjunto de valores e normas informais compartilhados por membros de um grupo, que lhes permite cooperar entre si” e que estabelece uma base de confiança. p. 72

Ensinar para além da economia do conhecimento significa estar em uma profissão reinventada, que não apenas proporciona valor, mas é movida por valores. Resumindo, o ensino para além da economia do conhecimento cultiva:

  • Caráter
  • Comunidade
  • Segurança
  • Inclusão
  • Integridade
  • Identidade cosmopolita
  • Continuidade e memória coletiva
  • Simpatia
  • Democracia
  • Maturidade pessoal e profissional.

Referência

HARGREAVES, Andy. O ensino na sociedade do conhecimento: educação na era da insegurança. Porto Alegre: Artmed, 2004. 237 p.

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