Reconhecer a inverdade como condição de vida: isto significa, sem dúvida, enfrentar de maneira perigosa os habituais sentimentos de valor; e uma filosofia que se atreve a fazê-lo se coloca, apenas por isso, além do bem e do mal. p. 12
Gradualmente foi se revelando para mim o que toda grande filosofia foi até o momento: a confissão pessoal de seu autor, uma espécie de memórias involuntárias e inadvertidas; e também se tornou claro que as intenções morais (ou imorais) de toda filosofia constituíram sempre o germe a partir do qual cresceu a planta inteira. p. 13
Quanto a superstição dos lógicos, nunca me cansarei de sublinhar um pequeno fato que esses supersticiosos não admitem de bom grado – a saber, que um pensamento vem quando 'ele' quer, e não quando 'eu' quero; de modo que é um falseamento da realidade efetiva dizer: o sujeito “eu” é a condição do predicado “penso”. p. 23
... moral, entenda-se, como a teoria das relações de dominação sob as quais se origina o fenômeno “vida”. -- p. 25
Toda a psicologia, até o momento, tem estado presa a preconceitos e temores morais: não ousou descer às profundezas. Compreendê-la como morfologia e teoria da evolução da vontade de poder, tal como faço – isto é algo que ninguém tocou sequer em pensamento: na medida em que é permitido ver, no que foi até agora escrito, um sintoma do que foi até aqui silenciado. p. 29
O sancta simplicitas! [Ó santa simplicidade!]. Em que curiosa simplificação e falsificação vive o homem! Impossível se maravilhar o bastante, quando se abrem os olhos para esse prodígio! Como tornamos tudo claro, livre, leve e simples à nossa volta! Como soubemos dar a nossos sentidos um passe livre para tudo que é superficial, e a nosso pensameno um divino desejo de saltos caprichosos e pseudoconclusões! -- como conseguimos desde o princípio manter nossa ignorância, para gozar de uma quase inconcebível liberdade, imprevidência, despreocupação, impetuosidade, jovialidade na vida, para gozar a vida! E foi apenas sobre essa base de ignorância, agora firme e granítica, que a ciência pode assentar até o momento, a vontade de saber sobre a base de uma vontade bem mais forte, a vontade de não-saber, de incerteza, de inverdade! p. 31
Com mais frequência ainda ocorre, como foi insinuado, que uma cabeça científica se encontre num corpo de símio, uma refinada inteligência de exceção numa alma vulgar – o que não é raro entre médicos e fisiólogos da moral. p. 34
Nos anos da juvetude, ainda veneramos e desprezamos sem a arte da nuance, que constitui nossa melhor aquisição na vida, e, como é justo, pagamos caro por atacar de tal modo com Sins e Nãos as pessoas e as coisas. Tudo se acha disposto para que o pior dos gostos, o gosto pelo incondicional, seja cruelmente logrado e abusado, até que o homem aprenda a pôr alguma arte nos sentimentos e, melhor ainda, a arriscar na tentativa do artificial: como fazem os veros artistas da vida. p. 38
Ó Voltaire! Ó humanidade! Ó imbecilidade! A “verdade”, a busca da verdade não é coisa fácil; e se no caso o homem se porta humanamente demais [...] [só busca o vero para fazer o bem] --, aposto que ele nada encontra. p. 42
Mas não há dúvida de que, para a descoberta de determinadas partes da verdade, os maus e os infelizes estão mais favorecidos e têm maior possibilidade de êxito; sem falar dos maus que são felizes – espécie que os moralistas não mencionam. p. 44
É preciso testar a si mesmo, dar-se provas de ser destinado à independência e ao mando; e é preciso fazê-lo no tempo justo. Não se deve fugir às provas, embora seja porventura o jogo mais perigoso que se pode jogar, e, em última instância, provas de que nós mesmos somos as testemunhas e os únicos juízes. Não se prender a uma pessoa: seja ela a mais querida – toda pessoa é uma prisão, e também um canto. p. 46
... tudo o que há de animal de rapina e de serpente no homem serve tão bem à elevação da espécie “homem” quanto o seu contrário... p. 48
Quem observou o mundo em profundidade, percebe quanta sabedoria existe no fato de os homens serem superficiais. É o seu instinto conservador que lhes ensina a ser volúveis, ligeiros e falsos. p. 62
Em circunstâncias de paz, o homem guerreiro se lança contra si mesmo. p. 69
Maturidade do homem: significa reaver a seriedade que se tinha quando criança ao brincar. p. 71
Envergonhar-se da própria imoralidade: é um degrau da escada ao fim da qual nos envergonhamos da nossa moralidade. p. 72
As grandes épocas de nossas vidas são aquelas em que temos a coragem de rebatizar nosso lado melhor. p. 75
Com frequência a sensualidade precipita o crescimento do amor, de modo que a raiz permanece fraca e é facilmente arrancada. p. 75
O que alguém é começa a se revelar quando o seu talento declina – quando ele cessa de mostrar o quanto pode. O talento é também um ornamento; um ornamento é também um esconderijo. p. 77
Um busca uma parteira para seus pensamentos, o outro, alguém a quem possa ajudar: assim nasce uma boa conversa. p. 77
O reparo, a travessura, a sorridente suspeita, a zombaria são sinais de saúde: tudo absoluto pertence à patologia. p. 80
A loucura é algo raro em indivíduos – mas em grupos, partidos, povos e épocas é a norma. p. 80
Falar muito de si pode ser um meio de se ocultar. p. 82
Não odiamos enquanto nossa estima é pouca, mas quando estimamos alguém como igual ou superior. p. 83
Acerca do que é a “verdade” ninguém parece ter sido veraz o bastante. p. 83
As consequências do que fizemos nos alcançam, indiferentes a que tenhamos “melhorado” nesse meio tempo. p. 83
Para o nosso olho é mais cômodo, numa dada ocasião, reproduzir uma imagem com frequência já produzida, do que fixar o que há de novo e diferente numa impressão: isto exige mais força, mais “moralidade”. p. 92
Tudo isso quer dizer que nós somos, até a medula e desde o começo – habituados a mentir. p. 92
Quidquid luce fuit, tenebris agit [o que aconteceu na luz, atua nas trevas]: mas também o contrário. Aquilo que vivemos no sonho, e que nele vivemos repetidas vezes, termina por pertencer à economia global de nossa alma, tanto quanto algo “realmente” vivido: em virtude disso tornamo-nos mais ricos ou mais pobres, temos uma necessidade a mais ou a menos, afinal somos um pouco guiados pelos hábitos de nossos sonhos, em plena luz do dia e até nos momentos mais serenos do nosso espírito desperto. p. 93
... pois quando todos são iguais, ninguém precisa mais de “direitos”. p. 102
O tempo da pequena política chegou ao fim: já o próximo século traz a luta pelo domínio da terra – a compulsão à grande política. p. 114
É difícil aprender o que é um filósofo, porque isso não se pode ensinar: há que “sabê-lo” por experiência – ou ter o orgulho de não sabê-lo. Mas o fato de que hoje todos falem de coisas de que não podem ter qualquer experiência vale particularmente, e desgraçadamente, para os filósofos e os estados filosóficos: - a pouquíssimos é dado conhecê-los, e todas opiniões populares acerca deles estão erradas. p. 120
Julgar e condenar moralmente é a forma favorita de os espiritualmente limitados se vingarem daqueles que o são menos, e também uma espécie de compensação por terem sido descurados pela natureza; e, por fim, uma oportunidade de adquirirem espírito e se tornarem sutis – a malícia espiritualiza. p. 125
A tensão da alma na infelicidade, que lhe cultiva a força, seu temor ao contemplar a grande ruína, sua inventividade e valentia no suportar, persistir, interpretar, utilizar a desventura, e o que só então lhe foi dado de mistério, profundidade, espírito, máscara, astúcia, grandeza – não lhe foi dado em meio ao sofrimento, sob a disciplina do grande sofrimento? p. 131
Mas não importa o que façamos, os imbecis e as aparências falam contra nós, dizendo: “Estes são homens sem dever” – sempre temos os imbecis e as aparências contra nós. p. 132
Toda virtude tende à estupidez, toda estupidez à virtude; “estúpido até a santidade”, dizem na Rússia – cuidemos de que, por honestidade, não nos tornemos santos e enfadonhos! A vida não é curta demais, para nela ainda – se enfadar? Seria preciso acreditar na vida eterna... p. 133
Afinal de contas, todos eles querem que se dê razão à moralidade inglesa, na medida em que justamente com ela é servida melhor a humanidade, ou “o benefício geral”, “a felicidade da maioria”, não! A felicidade da Inglaterra; eles querm provar a si mesmos, com todas as forças, que aspirar à felicidade inglesa, que dizer, a comfort [conforto] e fashion [estilo] (e, objetivo supremo, um lugar no Parlamento), é também o caminho reto para a virtude, mais ainda, que toda virtude até hoje havida no mundo consistiu precisamente em tal aspiração. Nenhum desses graves animais de rebanho, de consciência agitada (que propõem defender a causa do egoísmo como causa do bem-estar geral) quer saber e sentir que o “bem-estar geral” não é um ideal, uma meta, uma noção talvez apreensível, mas apenas um vomitório – que o que é justo para um não pode absolutamente ser justo para outro, que a exigência de uma moral para todos é nociva precisamente para os homens elevados, em suma, que existe hierarquia entre homem e homem, e, em consequência, entre moral e moral. p. 134
Por fim considere que mesmo o homem do conhecimento, ao obrigar seu espírito a conhecer, contra o pendor do espírito e também, com frequência, os desejos de seu coração, - isto é, a dizer Não, onde ele gostaria de aprovar, amar, adorar - , atua como um artista e transfigurador da crueldade; tomar as coisas de modo radical e profundo já é uma violação, um querer-magoar a vontade fundamental do espírito, que incessantemente busca a aparência e a superfície – em todo querer-conhecer já existe uma gota de crueldade. p. 136
Desde o início nada é mais alheio, mais avesso, mais hostil à mulher que a verdade – sua grande arte é a mentira, seu maior interesse, a aparência e a beleza. Vamos confessá-lo, nós, homens: nós festejamos e amamos precisamente essa arte e esse instinto na mulher: nós, para quem as coisas são pesadas e que de bom grado nos juntamos, para obter alívio, a seres cujas mãos, olhares e ternas tolices nos fazem parecer quase tolice a nossa seriedade, nosso peso e profundidade. [...] E não é verdadeiro que, tudo somado, “a mulher” foi sempre mais desprezada pela mulher mesma? - e de forma alguma por nós? Nós, homens, desejamos que a mulher não continue a se comprometer através do esclarecer: assim como foi cuidado e atenção masculina para com a mulher que a Igreja decretasse mulier taceat in ecclesia! [que a mulher se cale na Igreja!]. Foi em proveito da mulher que Napoleão deu a entender à excessivamente loquaz Madame de Staël: muliar taceat in politicis! [a mulher se cale na política!] - e penso que é um veraddeiro amigo das mulheres quem hoje lhes diz: mulier taceat de muliere! [a mulher se cale acerca da mulher!]. p. 140
Que se me perdoe o fato de , numa curta e arriscada estadia em terreno infectado, também não ter ficado inteiramente imune à doença, já tendo começado, como todo mundo, a ter pensamentos sobre coisas que não me dizem respeito: primeiro sintoma da infecção política. p. 158
[...] são ingnorados [...] os indícios mais inequívocos de que a Europa quer se tornar uma. p. 165
[...] o homem comum era somente aquilo pelo qual era tido - jamais habituado a estabelecer valores por si mesmo, tampouco se atribuía outro valor que não o atribuído por seus senhores (o autêntico direito senhorial é criar valores). Entenda-se como consequência de um enorme atavismo o fato de o homem ordinário ainda hoje esperar uma opinião sobre si, e depois submeter-se instintivamente a ela [...] o vaidoso se alegra de cada opinião boa que ouve sobre si [...] ele se submete [...] ele se sente submetido [...] por esse antigo instinto de submissão que nele irrompe. - É o “escravo” no sangue do vaidoso [...] a vaidade é um atavismo. p. 176
Uma espécie nasce, um tipo se torna firme e forte na luta prolongada com condições desfavoráveis essencialmente iguais. Das experiências de criadores se sabe que, inversamente, as espécies favorecidas com alimentação abundante, e sobretudo com proteção e cuidado extra, logo propendem fortemente à variação do tipo e são ricas em prodígios e monstruosidades (também em vícios monstruosos). p. 177
[...] nos chamados homens cultos, crentes das “idéias modernas”, talvez nada exista de mais nojento que a sua falta de pudor, seu cômodo atrevimento do olhar e da mão, com que tudo é tocado, lambido, apalpado; e é possível que hoje em dia se encontre no povo, no povo baixo, especialmente camposneses, mais nobreza relativa de gosto e tato na reverência do que nesse semimundo do espírito que lê jornais, os homens cultos. p. 180
E outra coisa não desejam hoje a educação e a cultura! Em nossa época tão popular, ou melhor, plebéia, “educação” e “cultura” têm de ser, essencialmente, arte de enganar – enganar quanto à origem, quanto à plebe herdada no corpo e na alma. p. 180
A altivez e o nojo espirituais de todo homem que sofreu profundamente – a hierarquia é quase que determinada pelo grau de sofrimento a que um homem pode chegar -, a arrepiante certeza da qual é impregnado e tingido, de mediante seu sofrimento saber mais do que os mais inteligentes e sábios podem saber, de ter estado e ver versado em tantos mundos distantes e horríveis, dos quais “vocês nada sabem!” ... essa altivez silenciosa daquele que sofre, esse orgulho do eleito do conhecimento, do “iniciado”, do quase sacrificado, tem como necessárias todas as formas do disfarce, para proteger-se do contato com mãos importunas e compassivas e, sobretudo, de todo aquele que não lhe é igual na dor. O sofrimento profundo enobrece; coloca à parte. p. 186
Sinais de nobreza: nunca pensar em rebaixar nossos deveres a deveres para todos; não querer ceder nem compartir a própria responsabilidade; contar entre os deveres os privilégios e o exercício dos mesmos. p. 187
O homem que aspira a uma coisa grande considera todo aquele que lhe cruza o caminho, ou como um meio, ou como retardamento e obstáculo – ou descando temporário. Sua bondade para com os outros, que lhe é peculiar e de estirpe superior, é possível apenas quando ele atinge a sua altura e domina. A impaciência, e sua consciência de, até então, estar sempre condenado à comédia – pois mesmo a guerra é uma comédia e esconde, assim como todo meio esconde o fim -, estragam-lhe todo convívio: tal espécie de homem conhece a solidão e o que ela tem de mais venenoso. p. 187
O problema dos que esperam. - São necessários golpes de sorte e muita coisa incalculável, para que um homem superior, no qual se acha adormecida a solução de um problema, chegue a agir – a “irromper”, poderíamos dizer – no momento justo. Em geral isso não acontece, e em todos os cantos da terra existem aqueles que esperam, mal sabendo em que medida esperam, e menos ainda que esperam em vão. Por vezes também chega muito tarde a chamada que desperta, aquele acaso que traz a “permissão” para o agir – quando a melhor juventude e força para agir já foi consumida pela inação; e muitos sentiram com espanto, ao se “pôr de pé”, os membros já dormentes e o espírito pesado! “É tarde demais!” - disseram a si mesmos, descrentes de si e desde então inúteis para sempre. - seria o “Rafael sem mãos”, no sentido mais amplo, a regra e não a exceção, no reino do gênio? - Talvez o gênio não seja tão raro; mas são raras as quinhentas mãos que ele necesstita para tiranizar o koupós, o “momento justo”, para agarrar o acaso do melhor jeito! p. 188
Em todas as espécies de injúria e perda, a alma mais baixa e mais rude se sai melhor do que a nobre: os perigos desta serão maiores, a probabilidade de sofrer desastre e perecer é enorme, na complexidade de suas condições de vida. - Num lagarto volta a crescer o dedo perdido: o mesmo não acontece no homem. p. 188
Péssimo! Sempre a velha história! Ao terminar a construção da casa, notamos que sem nos dar conta aprendemos, ao construí-la, algo que simplesmente tínha-mos de saber, antes de começar a construtir. O eterno aborrecido “Tarde demais!”. - A melancolia de tudo terminado!... p. 188
Viver com uma imensa e orgulhosa calma; sempre além. - Ter e não ter espontaneamente nossos afetos, nosso pró e contra, condescender durante oras com eles; montá-los como cavalos, frequentemente como asnos: - precisamos saber utilizar sua estupidez tão bem como seu fogo. Conservar suas trezentas fachadas; e também os óculos escuros: pois existem casos em que ninguém deve olhar nos olhos, menos ainda no “fundo”. E escolher como companhia esse vício velhaco e jovial, a cortesia. E continuar senhores de nossas quatro virtudes: coragem, perspicácia, simpatia, solidão. Pois a solidão é conosco uma virtude, enquanto sublime pendor e ímpeto para o asseio, que percebe como no contato entre as pessoas - “em sociedade” - as coisas se dão inevitavelmente sujas. Toda comunidade torna, de algum modo, alguma vez, em lagum lugar – comum, vulgar. p. 191
Um filósofo: é um homem que continuamente vê, vive, ouve, suspeita, espera e sonha coisas extraordinárias; que é colhido por seus próprios pensamentos, como se eles viessem de fora, de cima e de baixo, constituindo a sua espeécie de acontecimetos e coriscos; que é talvez ele próprio um temporal, caminhando prenhe de novos raios; um homem fatal, em torno do qual há sempre murmúrio, bramido, rompimento, inquietude. Um filósofo: oh, um ser que tantas vezes foge de si, que muitas vezes tem medo de si – mas é sempre curioso demais para não “voltar a si”... p. 194
REFERÊNCIA
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal: prelúdio à uma filosofia do futuro. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
Gradualmente foi se revelando para mim o que toda grande filosofia foi até o momento: a confissão pessoal de seu autor, uma espécie de memórias involuntárias e inadvertidas; e também se tornou claro que as intenções morais (ou imorais) de toda filosofia constituíram sempre o germe a partir do qual cresceu a planta inteira. p. 13
Quanto a superstição dos lógicos, nunca me cansarei de sublinhar um pequeno fato que esses supersticiosos não admitem de bom grado – a saber, que um pensamento vem quando 'ele' quer, e não quando 'eu' quero; de modo que é um falseamento da realidade efetiva dizer: o sujeito “eu” é a condição do predicado “penso”. p. 23
... moral, entenda-se, como a teoria das relações de dominação sob as quais se origina o fenômeno “vida”. -- p. 25
Toda a psicologia, até o momento, tem estado presa a preconceitos e temores morais: não ousou descer às profundezas. Compreendê-la como morfologia e teoria da evolução da vontade de poder, tal como faço – isto é algo que ninguém tocou sequer em pensamento: na medida em que é permitido ver, no que foi até agora escrito, um sintoma do que foi até aqui silenciado. p. 29
O sancta simplicitas! [Ó santa simplicidade!]. Em que curiosa simplificação e falsificação vive o homem! Impossível se maravilhar o bastante, quando se abrem os olhos para esse prodígio! Como tornamos tudo claro, livre, leve e simples à nossa volta! Como soubemos dar a nossos sentidos um passe livre para tudo que é superficial, e a nosso pensameno um divino desejo de saltos caprichosos e pseudoconclusões! -- como conseguimos desde o princípio manter nossa ignorância, para gozar de uma quase inconcebível liberdade, imprevidência, despreocupação, impetuosidade, jovialidade na vida, para gozar a vida! E foi apenas sobre essa base de ignorância, agora firme e granítica, que a ciência pode assentar até o momento, a vontade de saber sobre a base de uma vontade bem mais forte, a vontade de não-saber, de incerteza, de inverdade! p. 31
Com mais frequência ainda ocorre, como foi insinuado, que uma cabeça científica se encontre num corpo de símio, uma refinada inteligência de exceção numa alma vulgar – o que não é raro entre médicos e fisiólogos da moral. p. 34
Nos anos da juvetude, ainda veneramos e desprezamos sem a arte da nuance, que constitui nossa melhor aquisição na vida, e, como é justo, pagamos caro por atacar de tal modo com Sins e Nãos as pessoas e as coisas. Tudo se acha disposto para que o pior dos gostos, o gosto pelo incondicional, seja cruelmente logrado e abusado, até que o homem aprenda a pôr alguma arte nos sentimentos e, melhor ainda, a arriscar na tentativa do artificial: como fazem os veros artistas da vida. p. 38
Ó Voltaire! Ó humanidade! Ó imbecilidade! A “verdade”, a busca da verdade não é coisa fácil; e se no caso o homem se porta humanamente demais [...] [só busca o vero para fazer o bem] --, aposto que ele nada encontra. p. 42
Mas não há dúvida de que, para a descoberta de determinadas partes da verdade, os maus e os infelizes estão mais favorecidos e têm maior possibilidade de êxito; sem falar dos maus que são felizes – espécie que os moralistas não mencionam. p. 44
É preciso testar a si mesmo, dar-se provas de ser destinado à independência e ao mando; e é preciso fazê-lo no tempo justo. Não se deve fugir às provas, embora seja porventura o jogo mais perigoso que se pode jogar, e, em última instância, provas de que nós mesmos somos as testemunhas e os únicos juízes. Não se prender a uma pessoa: seja ela a mais querida – toda pessoa é uma prisão, e também um canto. p. 46
... tudo o que há de animal de rapina e de serpente no homem serve tão bem à elevação da espécie “homem” quanto o seu contrário... p. 48
Quem observou o mundo em profundidade, percebe quanta sabedoria existe no fato de os homens serem superficiais. É o seu instinto conservador que lhes ensina a ser volúveis, ligeiros e falsos. p. 62
Em circunstâncias de paz, o homem guerreiro se lança contra si mesmo. p. 69
Maturidade do homem: significa reaver a seriedade que se tinha quando criança ao brincar. p. 71
Envergonhar-se da própria imoralidade: é um degrau da escada ao fim da qual nos envergonhamos da nossa moralidade. p. 72
As grandes épocas de nossas vidas são aquelas em que temos a coragem de rebatizar nosso lado melhor. p. 75
Com frequência a sensualidade precipita o crescimento do amor, de modo que a raiz permanece fraca e é facilmente arrancada. p. 75
O que alguém é começa a se revelar quando o seu talento declina – quando ele cessa de mostrar o quanto pode. O talento é também um ornamento; um ornamento é também um esconderijo. p. 77
Um busca uma parteira para seus pensamentos, o outro, alguém a quem possa ajudar: assim nasce uma boa conversa. p. 77
O reparo, a travessura, a sorridente suspeita, a zombaria são sinais de saúde: tudo absoluto pertence à patologia. p. 80
A loucura é algo raro em indivíduos – mas em grupos, partidos, povos e épocas é a norma. p. 80
Falar muito de si pode ser um meio de se ocultar. p. 82
Não odiamos enquanto nossa estima é pouca, mas quando estimamos alguém como igual ou superior. p. 83
Acerca do que é a “verdade” ninguém parece ter sido veraz o bastante. p. 83
As consequências do que fizemos nos alcançam, indiferentes a que tenhamos “melhorado” nesse meio tempo. p. 83
Para o nosso olho é mais cômodo, numa dada ocasião, reproduzir uma imagem com frequência já produzida, do que fixar o que há de novo e diferente numa impressão: isto exige mais força, mais “moralidade”. p. 92
Tudo isso quer dizer que nós somos, até a medula e desde o começo – habituados a mentir. p. 92
Quidquid luce fuit, tenebris agit [o que aconteceu na luz, atua nas trevas]: mas também o contrário. Aquilo que vivemos no sonho, e que nele vivemos repetidas vezes, termina por pertencer à economia global de nossa alma, tanto quanto algo “realmente” vivido: em virtude disso tornamo-nos mais ricos ou mais pobres, temos uma necessidade a mais ou a menos, afinal somos um pouco guiados pelos hábitos de nossos sonhos, em plena luz do dia e até nos momentos mais serenos do nosso espírito desperto. p. 93
... pois quando todos são iguais, ninguém precisa mais de “direitos”. p. 102
O tempo da pequena política chegou ao fim: já o próximo século traz a luta pelo domínio da terra – a compulsão à grande política. p. 114
É difícil aprender o que é um filósofo, porque isso não se pode ensinar: há que “sabê-lo” por experiência – ou ter o orgulho de não sabê-lo. Mas o fato de que hoje todos falem de coisas de que não podem ter qualquer experiência vale particularmente, e desgraçadamente, para os filósofos e os estados filosóficos: - a pouquíssimos é dado conhecê-los, e todas opiniões populares acerca deles estão erradas. p. 120
Julgar e condenar moralmente é a forma favorita de os espiritualmente limitados se vingarem daqueles que o são menos, e também uma espécie de compensação por terem sido descurados pela natureza; e, por fim, uma oportunidade de adquirirem espírito e se tornarem sutis – a malícia espiritualiza. p. 125
A tensão da alma na infelicidade, que lhe cultiva a força, seu temor ao contemplar a grande ruína, sua inventividade e valentia no suportar, persistir, interpretar, utilizar a desventura, e o que só então lhe foi dado de mistério, profundidade, espírito, máscara, astúcia, grandeza – não lhe foi dado em meio ao sofrimento, sob a disciplina do grande sofrimento? p. 131
Mas não importa o que façamos, os imbecis e as aparências falam contra nós, dizendo: “Estes são homens sem dever” – sempre temos os imbecis e as aparências contra nós. p. 132
Toda virtude tende à estupidez, toda estupidez à virtude; “estúpido até a santidade”, dizem na Rússia – cuidemos de que, por honestidade, não nos tornemos santos e enfadonhos! A vida não é curta demais, para nela ainda – se enfadar? Seria preciso acreditar na vida eterna... p. 133
Afinal de contas, todos eles querem que se dê razão à moralidade inglesa, na medida em que justamente com ela é servida melhor a humanidade, ou “o benefício geral”, “a felicidade da maioria”, não! A felicidade da Inglaterra; eles querm provar a si mesmos, com todas as forças, que aspirar à felicidade inglesa, que dizer, a comfort [conforto] e fashion [estilo] (e, objetivo supremo, um lugar no Parlamento), é também o caminho reto para a virtude, mais ainda, que toda virtude até hoje havida no mundo consistiu precisamente em tal aspiração. Nenhum desses graves animais de rebanho, de consciência agitada (que propõem defender a causa do egoísmo como causa do bem-estar geral) quer saber e sentir que o “bem-estar geral” não é um ideal, uma meta, uma noção talvez apreensível, mas apenas um vomitório – que o que é justo para um não pode absolutamente ser justo para outro, que a exigência de uma moral para todos é nociva precisamente para os homens elevados, em suma, que existe hierarquia entre homem e homem, e, em consequência, entre moral e moral. p. 134
Por fim considere que mesmo o homem do conhecimento, ao obrigar seu espírito a conhecer, contra o pendor do espírito e também, com frequência, os desejos de seu coração, - isto é, a dizer Não, onde ele gostaria de aprovar, amar, adorar - , atua como um artista e transfigurador da crueldade; tomar as coisas de modo radical e profundo já é uma violação, um querer-magoar a vontade fundamental do espírito, que incessantemente busca a aparência e a superfície – em todo querer-conhecer já existe uma gota de crueldade. p. 136
Desde o início nada é mais alheio, mais avesso, mais hostil à mulher que a verdade – sua grande arte é a mentira, seu maior interesse, a aparência e a beleza. Vamos confessá-lo, nós, homens: nós festejamos e amamos precisamente essa arte e esse instinto na mulher: nós, para quem as coisas são pesadas e que de bom grado nos juntamos, para obter alívio, a seres cujas mãos, olhares e ternas tolices nos fazem parecer quase tolice a nossa seriedade, nosso peso e profundidade. [...] E não é verdadeiro que, tudo somado, “a mulher” foi sempre mais desprezada pela mulher mesma? - e de forma alguma por nós? Nós, homens, desejamos que a mulher não continue a se comprometer através do esclarecer: assim como foi cuidado e atenção masculina para com a mulher que a Igreja decretasse mulier taceat in ecclesia! [que a mulher se cale na Igreja!]. Foi em proveito da mulher que Napoleão deu a entender à excessivamente loquaz Madame de Staël: muliar taceat in politicis! [a mulher se cale na política!] - e penso que é um veraddeiro amigo das mulheres quem hoje lhes diz: mulier taceat de muliere! [a mulher se cale acerca da mulher!]. p. 140
Que se me perdoe o fato de , numa curta e arriscada estadia em terreno infectado, também não ter ficado inteiramente imune à doença, já tendo começado, como todo mundo, a ter pensamentos sobre coisas que não me dizem respeito: primeiro sintoma da infecção política. p. 158
[...] são ingnorados [...] os indícios mais inequívocos de que a Europa quer se tornar uma. p. 165
[...] o homem comum era somente aquilo pelo qual era tido - jamais habituado a estabelecer valores por si mesmo, tampouco se atribuía outro valor que não o atribuído por seus senhores (o autêntico direito senhorial é criar valores). Entenda-se como consequência de um enorme atavismo o fato de o homem ordinário ainda hoje esperar uma opinião sobre si, e depois submeter-se instintivamente a ela [...] o vaidoso se alegra de cada opinião boa que ouve sobre si [...] ele se submete [...] ele se sente submetido [...] por esse antigo instinto de submissão que nele irrompe. - É o “escravo” no sangue do vaidoso [...] a vaidade é um atavismo. p. 176
Uma espécie nasce, um tipo se torna firme e forte na luta prolongada com condições desfavoráveis essencialmente iguais. Das experiências de criadores se sabe que, inversamente, as espécies favorecidas com alimentação abundante, e sobretudo com proteção e cuidado extra, logo propendem fortemente à variação do tipo e são ricas em prodígios e monstruosidades (também em vícios monstruosos). p. 177
[...] nos chamados homens cultos, crentes das “idéias modernas”, talvez nada exista de mais nojento que a sua falta de pudor, seu cômodo atrevimento do olhar e da mão, com que tudo é tocado, lambido, apalpado; e é possível que hoje em dia se encontre no povo, no povo baixo, especialmente camposneses, mais nobreza relativa de gosto e tato na reverência do que nesse semimundo do espírito que lê jornais, os homens cultos. p. 180
E outra coisa não desejam hoje a educação e a cultura! Em nossa época tão popular, ou melhor, plebéia, “educação” e “cultura” têm de ser, essencialmente, arte de enganar – enganar quanto à origem, quanto à plebe herdada no corpo e na alma. p. 180
A altivez e o nojo espirituais de todo homem que sofreu profundamente – a hierarquia é quase que determinada pelo grau de sofrimento a que um homem pode chegar -, a arrepiante certeza da qual é impregnado e tingido, de mediante seu sofrimento saber mais do que os mais inteligentes e sábios podem saber, de ter estado e ver versado em tantos mundos distantes e horríveis, dos quais “vocês nada sabem!” ... essa altivez silenciosa daquele que sofre, esse orgulho do eleito do conhecimento, do “iniciado”, do quase sacrificado, tem como necessárias todas as formas do disfarce, para proteger-se do contato com mãos importunas e compassivas e, sobretudo, de todo aquele que não lhe é igual na dor. O sofrimento profundo enobrece; coloca à parte. p. 186
Sinais de nobreza: nunca pensar em rebaixar nossos deveres a deveres para todos; não querer ceder nem compartir a própria responsabilidade; contar entre os deveres os privilégios e o exercício dos mesmos. p. 187
O homem que aspira a uma coisa grande considera todo aquele que lhe cruza o caminho, ou como um meio, ou como retardamento e obstáculo – ou descando temporário. Sua bondade para com os outros, que lhe é peculiar e de estirpe superior, é possível apenas quando ele atinge a sua altura e domina. A impaciência, e sua consciência de, até então, estar sempre condenado à comédia – pois mesmo a guerra é uma comédia e esconde, assim como todo meio esconde o fim -, estragam-lhe todo convívio: tal espécie de homem conhece a solidão e o que ela tem de mais venenoso. p. 187
O problema dos que esperam. - São necessários golpes de sorte e muita coisa incalculável, para que um homem superior, no qual se acha adormecida a solução de um problema, chegue a agir – a “irromper”, poderíamos dizer – no momento justo. Em geral isso não acontece, e em todos os cantos da terra existem aqueles que esperam, mal sabendo em que medida esperam, e menos ainda que esperam em vão. Por vezes também chega muito tarde a chamada que desperta, aquele acaso que traz a “permissão” para o agir – quando a melhor juventude e força para agir já foi consumida pela inação; e muitos sentiram com espanto, ao se “pôr de pé”, os membros já dormentes e o espírito pesado! “É tarde demais!” - disseram a si mesmos, descrentes de si e desde então inúteis para sempre. - seria o “Rafael sem mãos”, no sentido mais amplo, a regra e não a exceção, no reino do gênio? - Talvez o gênio não seja tão raro; mas são raras as quinhentas mãos que ele necesstita para tiranizar o koupós, o “momento justo”, para agarrar o acaso do melhor jeito! p. 188
Em todas as espécies de injúria e perda, a alma mais baixa e mais rude se sai melhor do que a nobre: os perigos desta serão maiores, a probabilidade de sofrer desastre e perecer é enorme, na complexidade de suas condições de vida. - Num lagarto volta a crescer o dedo perdido: o mesmo não acontece no homem. p. 188
Péssimo! Sempre a velha história! Ao terminar a construção da casa, notamos que sem nos dar conta aprendemos, ao construí-la, algo que simplesmente tínha-mos de saber, antes de começar a construtir. O eterno aborrecido “Tarde demais!”. - A melancolia de tudo terminado!... p. 188
Viver com uma imensa e orgulhosa calma; sempre além. - Ter e não ter espontaneamente nossos afetos, nosso pró e contra, condescender durante oras com eles; montá-los como cavalos, frequentemente como asnos: - precisamos saber utilizar sua estupidez tão bem como seu fogo. Conservar suas trezentas fachadas; e também os óculos escuros: pois existem casos em que ninguém deve olhar nos olhos, menos ainda no “fundo”. E escolher como companhia esse vício velhaco e jovial, a cortesia. E continuar senhores de nossas quatro virtudes: coragem, perspicácia, simpatia, solidão. Pois a solidão é conosco uma virtude, enquanto sublime pendor e ímpeto para o asseio, que percebe como no contato entre as pessoas - “em sociedade” - as coisas se dão inevitavelmente sujas. Toda comunidade torna, de algum modo, alguma vez, em lagum lugar – comum, vulgar. p. 191
Um filósofo: é um homem que continuamente vê, vive, ouve, suspeita, espera e sonha coisas extraordinárias; que é colhido por seus próprios pensamentos, como se eles viessem de fora, de cima e de baixo, constituindo a sua espeécie de acontecimetos e coriscos; que é talvez ele próprio um temporal, caminhando prenhe de novos raios; um homem fatal, em torno do qual há sempre murmúrio, bramido, rompimento, inquietude. Um filósofo: oh, um ser que tantas vezes foge de si, que muitas vezes tem medo de si – mas é sempre curioso demais para não “voltar a si”... p. 194
REFERÊNCIA
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal: prelúdio à uma filosofia do futuro. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
Magnifico! Sou um grande apreciador do pensamento de Nietzsche, como ele, a humanidade jamais verá, contudo, melhores do que ele, certamente, haverão de surgir. Afinal, superar-se, como ele sempre defendeu, é o maior objetivo de alguns que fazem parte da humanidade.
ResponderExcluir