Gostos de classe e estilos de vida.
Constituído num tipo determinado de condições materiais de existência, esse sistema de esquemas geradores, inseparavelmente éticos e estéticos, exprime segundo sua lógica própria a necessidade dessas condições em sistemas de preferências cujas oposições reproduzem, sob uma forma transfigurada e muitas vezes irreconhecível, as diferenças ligadas à posição na estrutura da distribuição dos instrumentos de apropriação, transmutadas, assim, em distinções simbólicas. P. 83
A sistematicidade e a unidade só estão no modus operatum porque elas estão no modus operandi: elas só estão no conjunto das "propriedades", no duplo sentido do termo, de que se cercam os indivíduos ou grupos – casas, móveis, quadros, livros, automóveis, alcoóis, cigarros, perfumes, roupas – e nas práticas em que se manifesta sua distinção – esportes, jogos, distrações culturais – porque estão na unidade originariamente sintética do habitus, princípio unificador e gerador de todas as práticas. O gosto, propensão e aptidão à apropriação (material e/ou simbólica) de uma determinada categoria de objetos ou práticas classificadas e classificadoras, é a fórmula generativa que está no princípio do estilo de vida. O estilo de vida é um conjunto unitário de preferências distintivas que exprimem, na lógica específica de cada um dos subespaços simbólicos, mobília, vestimentas, linguagem ou héxis corporal, a mesma intenção expressiva, princípio da unidade de estilo que se entrega diretamente à intuição e que a análise destrói ao recortá-lo em universos separados. P 83.
Do mesmo modo que a oposição entre bebida e abstinência, intemperança e sobriedade, o bar e o lar simboliza todo um aspecto da oposição entre as classes populares e a pequena burguesia, que identifica suas ambições de ascenção e suas preocupações de respeitabilidade na ruptura com tudo o que associa ao universo repudiado, no interior do universo dos connasseurs, (...) a oposição entre champanhe e uísque condensa o que separa a burguesia tradicional da nova burguesia (...). p 84
O luxo e a necessidade
O mais importante das diferenças na ordem do estilo de vida e, mais ainda, da "estilização da vida", reside nas variações da distância com o mundo – suas pressões materiais e suas urgências temporais – distância que depende, ao mesmo tempo, da urgência objetiva da situação no momento considerado e da disposição para tomar suas distâncias em relação a essa situação. P. 84
Não há profissão pequeno-burguesa de ascetismo, nem elogio do limpo, do sóbrio, do bem-cuidado, que não encerre uma condenação tácita à sujeira, à inconveniência, nas palavras ou nas coisas, à intemperança, à imprevidência ao impudor ou à imprudência, como se os agentes só pudessem reconhecer seus valores naquilo que os valorizam, na última diferença que é também, muitas vezes, a última conquista, na distância genética e estrutural que propriamente os define. P. 86.
Quanto às chamadas de ordem ("por quem você se toma?", "não é para pessoas como nós") onde se enuncia o princípio da conformidade, única norma mais ou menos explícita do gosto popular, e que visam encorajar as escolhas "modestas" em todo caso impostas pelas condições objetivas, elas próprias encerram uma ameaça contra a ambição de identificar-se com outros grupos, de se distinguir, portanto, e se distanciar do grupo; pretensão particularmente condenada nos homens, todo refinamento em matéria de linguagem ou de vestuário sendo imediatamente percebido não somente como um sinal de aburguesamento mas também, inseparavelmente, como o indício de disposições efeminadas. P. 86.
A própria disposição estética, que, com a competência específica correspondente, constitui a condição da apropriação legítima da obra de arte, é uma dimensão de um estilo de vida no qual se exprimem, sob uma forma irreconhecível, as características específicas de uma condição. P 87.
O consumo material ou simbólico da obra de arte constitui uma das manifestações supremas do desembaraço, no sentido de, ao mesmo tempo, condição e disposição que a língua ordinária dá a essa palavra. O desprendimento do olhar puro não pode ser dissociado de uma disposição geral ao gratuito, ao desinteressado, produto paradoxal de um condicionamento econômico negativo que engendra a distância com relação à necessidade. P. 87.
Na medida em que cresce a distância objetiva com relação à necessidade, o estilo de vida se torna, sempre, cada vez mais o produto de uma "estilização da vida", decisão sistemática que orienta e organiza as práticas mais diversas, escolha de um vinho e de um queijo ou decoração de uma casa de campo. Afirmação de um poder sobre a necessidade dominada, ele encerra sempre a reivindicação de uma superioridade legítima sobre aqueles que, não sabendo afirmar esse desprezo pelas contingências no luxo gratuito e no desperdício ostentatório, permanecem dominados pelos interesses e as urgências mundanas: os gostos de liberdade só podem se afirmar enquanto tais com relação aos gostos de necessidade e, passando por aí para a ordem da estética, constituídos como vulgares. Essa pretensão tem menos chances que qualquer outra de ser contestada, posto que a relação sobre a qual ela se funda, da disposição "pura" e "desinteressada" com relação às condições que a tornam possível, isto é, as condições matérias de existência mais raras porque mais liberadas da necessidade econômica, tem todas as chances de passa despercebida. O privilégio mais classificador tem, assim, o privilégio de aparecer como o mais fundado na natureza. P. 87.
Nada distingue, com efeito, mais rigorosamente as diferentes classes do que as disposições e as competências objetivamente exigidas pelo consumo legítimo de obras legítimas; e, mais rara do que essa capacidade relativamente comum, de adotar um ponto de vista propriamente estético sobre objetos já constituídos esteticamente – designados, portanto, à admiração daqueles que aprenderam a reconhecer os sinais – é a capacidade reservada aos "criadores" de constituir esteticamente objetos quaisquer ou mesmo "vulgares" (porque apropriados, esteticamente ou não, pelo vulgar) ou a aptidão para engajar os princípios de uma estética "pura" nas escolhas mais ordinárias da existência ordinária, em matéria de cozinha, de vestimenta ou decoração, por exemplo. P. 89.
Os gostos obedecem, assim, a uma espécie de lei de Engels generalizada: a cada nível de distribuição, o que é raro e constitui um luxo inacessível ou uma fantasia absurda para os ocupantes no nível anterior ou inferior, torna-se banal ou comum, e se encontra relegado à ordem do necessário, do evidente, pelo aparecimento de novos consumos, mais raros e, portanto, mais distintivos. P. 85
A aptidão para pensar objetos quaisquer e ordinários (como uma casca, uma armação metálica, repolhos) espontaneamente "odiosos" (como uma cobra) ou tabus sociais (como uma mulher grávida ou um acidente automobilístico), enquanto belos, ou melhor, enquanto justificáveis de uma transfiguração artística (...), está fortemente ligado ao capital cultural herdado ou adquirido escolarmente. P. 90.
As distâncias entre as classes não são menos marcadas quando consideramos a competência específica que é uma das condições (tácitas) do consumo de bens de cultura legítimos. P. 91.
Distância respeitosa e familiaridade
A verdade, à primeira vista paradoxal, é que, quanto mais elevamos a hierarquia social, mais a verdade dos gostos reside na organização e funcionamento do sistema escolar, encarregado de inculcar o programa (no sentido da Escola e da Informática) que governa os espíritos "cultos" até na procura do "toque pessoal" e na ambição da "originalidade". P 95.
Não seria necessário demonstrar que a cultura é adquirida ou que essa forma particular de competência a que chamamos gosto é um produto da educação ou que nada é mais banal do que a procura da originalidade se todo um conjunto de mecanismos sociais não viessem dissimular essas verdades primeiras que a ciência deve restabelecer, estabelecendo em acréscimo as condições e as funções de sua dissimulação. É assim que a ideologia do gosto natural, que repousa na negação de todas essas evidências, tira sua aparência e sua eficácia daquilo que, como todas as estratégias ideológicas que se engendram na luta de classes cotidianas, ela naturaliza das diferenças reais, convertendo em diferenças de natureza diferenças no modo de aquisição da cultura. P. 95.
Assim, o que a ideologia do gosto natural opõe, através de duas modalidades de competência cultural e de sua utilização, são dois modos de aquisição da cultura: o aprendizado total, precoce e insensível, efetuado desde a primeira infância no seio da família, e o aprendizado tardio, metódico, acelerado, que uma ação pedagógica explícita e expressa assegura. P. 97.
(...) todo aprendizado racional supõe um mínimo de racionalização que deixa sua marca na relação, mais intelectual, com os bens consumidos. P. 97.
O desapossamento cultural
O estilo de vida das classes populares deve suas características fundamentais, compreendendo aquelas que podem parecer como sendo as mais positivas, ao fato de que ele representa uma forma de adaptação à posição ocupada na estrutura social: encerra sempre, por esse fato, nem que seja sob a forma do sentimento da incapacidade, da incompetência, do fracasso ou, aqui, da indignidade cultural, uma forma de reconhecimento dos valores dominantes. P. 100.
Esse desapossamento da capacidade de formular seus próprios fins (e a imposição correlativa de necessidades artificiais) é, sem dúvida, a forma mais sutil de alienação. É assim que o estilo de vida popular se define tanto pela ausência de todos os consumos de luxo (...), quanto pelo fato de que esses consumos nele estão, entretanto, presentes sob a forma de substitutos tais como os vinhos gasosos no lugar do champanhe ou uma imitação no lugar do couro, indícios de um desapossamento de segundo grau que se deixa impor a definição dos bens dignos de serem possuídos. P. 100.
Excluídos da propriedade dos instrumentos de produção, eles (classes populares) são também desapossados dos instrumentos de apropriação simbólica das máquinas a que eles servem, não possuindo o capital cultural incorporado que é a condição da apropriação conforme (ao menos na definição legítima) do capital cultural objetivado nos objetos técnicos. P. 100.
Dominados pelas máquinas a que eles servem e por aqueles que detêm os meios legítimos, isto é, teóricos, de dominá-los, eles reencontram a cultura (na fábrica como na escola, que ensina o respeito pelos saberes inúteis e desinteressados) como um princípio de ordem que não tem necessidade de desmontar sua utilidade prática para ser justificado. P. 102.
O operário e o pequeno-burguês
Mas aqueles que acreditam na existência de uma "cultura popular" – verdadeira aliança de palavras através da qual impomos, queiramos ou não, a definição dominante da cultura – devem esperar encontrar, se eles forem lá ver, nada mais que uma forma mutilada, diminuída, empobrecida, parcial, da cultura dominante e não o que eles chamam de contracultura, cultura realmente dirigida contra a cultura dominante, conscientemente reivindicada como símbolo de um estatuto ou profissão de existência separada. P 106.
(...) A tomada de consciência política é freqüentemente solidária de um verdadeiro empreendimento de restauração da dignidade cultural que, vivida como libertadora (o que ela sempre é também), implica uma forma de submissão aos valores dominantes e aos princípios sobre os quais a classe dominante funda sua dominação, como o reconhecimento das hierarquias ligadas aos títulos escolares ou às capacidades que a Escola supostamente garante. P. 107.
Tudo leva a pensar que a fração de classe mais consciente da classe operária permanece muito profundamente submissa, em matéria de cultura e de língua, às normas a aos valores dominantes: logo, profundamente sensível aos efeitos de imposição de autoridade que pode exercer, inclusive na política, todo detentor de uma autoridade cultural sobre aqueles em que o sistema escolar – sendo esta uma das funções sociais do ensino primário – inculcou um reconhecimento sem conhecimento. P. 108.
A boa vontade cultural
A aparência disparatada dos sistemas de preferências, a confusão de gêneros e de hierarquias, opereta e ópera, vulgarização e ciência, imprevisibilidade dos conhecimentos e das ignorâncias, o vínculo que reúne os saberes não sendo senão a seqüência dos acasos biográficos, tudo remete às particularidades de um modo de aquisição. P. 110.
O ecletismo forçado e inconsciente dessa cultura objetivamente sistemática da qual o princípio unificador é a boa vontade cultural (...), é, para qualquer um que interiorizou os sistemas de classificação legítimos (quer dizer, é preciso lembrá-lo, arbitrários e desconhecidos enquanto tais), o oposto do ecletismo erudito dos estetas que podem encontrar na mistura de gêneros e na subversão das hierarquias uma ocasião de manifestar a onipotência da disposição estética: à maneira do bilingüismo culto, que domina os dois códigos, isto é, as distinções entre os códigos, o estetismo supõe o domínio consciente e explícito de uma espécie de código dos códigos, de uma gramática dos gêneros e dos estilos que permite aplicar conscientemente a disposição erudita fora de seu campo de aplicação ordinário. P. 111.
Para ficar ao abrigo dessas interferências que traduzem o gosto pouco seguro do autodidata, é preciso possuir os sistemas de classificação e as técnicas de identificação dos símbolos de distinção, o domínio prático dos índices de "classe", da hierarquia social das pessoas e dos objetos, que define o que se chama bom gosto (...). P. 111.
Essa mistura de gêneros, essa confusão de ordens, esse espécie de bricabraque onde se alinham os produtos legítimos "fáceis" ou "ultrapassados", fora de moda, desclassificados, portanto, desvalorizados – posto que um símbolo de distinção apropriado com atraso perde tudo o que faz seu valor distintivo – e os produtos "médios" – do campo da produção em massa, é a imagem objetivada de uma cultura pequeno-burguesa. P. 112.
Mas essa cultura vivida lacunar, descontínua e inconexamente, protege mal contra a ansiedade permanente da ignorância inconfessável ou do engano imperdoável. A tudo que lhe aparece como sendo uma prova de "cultura geral", no sentido escolar do termo, o pequeno-burguês, que se sente obrigado a mostrar-se experiente, não pode opor nem a indiferença daqueles que não estão na corrida, nem o desprendimento liberado daqueles cujos títulos autorizam a confessar ou mesmo a reivindicar suas lacunas. P. 112.
O modo de aquisição, perpetuando-se sempre na modalidade das aquisições, sempre se arrisca a ser traído pela qualidade de seus saberes e pela maneira de se servir deles (...). É assim que, na luta de classes simbólica que o opõe aos detentores dos diplomas de qualificação cultural o pretendente "pretensioso", enfermeira confrontada como médico, técnico oposto ao politécnico, quadro que entrou pela "porta dos fundos" em concorrência com o quadro que saiu da "porta da frente", tem todas as chances de ver seus saberes e suas técnicas desvalorizados, como sendo muito estreitamente subordinados a fins práticos, "interessados" demais, demasiado marcados, em sua modalidade, pela pressa e pelo ardor de sua aquisição, em proveito de conhecimentos mais fundamentais, e também mais gratuitos (no sentido também que deles não se vê nenhum efeito sensível, senão o efeito de legitimidade, à prova concreta) por aqueles mesmos que devem sua posição dominante a seus certificados de cultura. P. 113.
(...) Suas carências, suas lacunas, suas classificações arbitrárias, só existem em relação a uma cultura escolar capaz de fazer desconhecer o arbitrário de suas classificações e de se fazer reconhecer até em suas lacunas. P. 114.
É manifesta a relação entre ânsia de conformidade cultural que determina uma busca ansiosa de autoridades e de modelos de conduta e que leva à escolha de produtos seguros e certificados (como os clássicos e os prêmios literários) e a tendência à hipercorreção lingüística, espécie de rigorismo que leva a fazer demais pelo medo de não fazer o bastante e a perseguir, em si e nos outros, as incorreções – como em outros campos a incorreção e o erro moral – ou, ainda, a sede quase insaciável de técnicas ou de regras de conduta que levam a submeter toda a existência, em matéria de alimentação, por exemplo, a uma disciplina rigorosa, e a governar-se em todas as coisas por princípios e preceitos. P. 115.
A pretensão e a distinção
Só nos reta introduzir a distinção dos nativos da arte de viver legítimos, detentores do monopólio do desembaraço e da segurança dados pela familiaridade e competência que os aprendizados mais precoces e os mais prolongados asseguram, para colocar em marcha a dialética da pretensão e da distinção, princípio da transformação permanente dos gostos. Nesse jogo de recusas recusando outras recusas, de superações superando outras superações, estão engajadas as disposições fundamentais do estilo de vida que, no momento mesmo em que elas se constituem em sistemas de princípios estéticos explícitos, permanecem enraizados numa arte de viver. P. 115.
A legitimidade da disposição pura é tão totalmente reconhecida que tudo leva a esquecer que a definição da arte e, através dela, da arte de viver, é um lugar de luta entre as classes; e isso tanto mais que as artes de viver antagonistas têm muito poucas chances de conseguirem se exprimir, tendo vista as condições das quais elas são o produto. P. 117.
Esses tópicos são os resumos do texto principal? pois possuo o texto principal e percebi que há cortes. Lendo apenas essas partes que voce pegou, da pra entender certinho o que cada parte tem a dizer?
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