Um livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive. (Padre Antônio Vieira)

sexta-feira, 3 de julho de 2009

LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal

 LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo. Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 402 p.



[...] a ambiência de estimulação dos desejos, a euforia publicitária, a imagem luxuriante das férias, a sexualização dos signos e dos corpos. Eis um tipo de sociedade que substitui a coerção pela sedução, o dever pelo hedonismo, a poupança pelo dispêndio, a solenidade pelo humor, o recalque pela liberação, as promessas do futuro pelo presente. p. 35


[...] a publicidade passou de uma comunicação construída em torno do produto e de seus benefícios funcionais a campanhas que difundem valores e uma visão que enfatiza o espetacular, a emoção, o sentido não literal, [...] significantes que ultrapassam a realidade objetiva dos produtos. p. 46


A ansiedade está [...] na origem do novo gosto dos jovens adolescentes pelas marcas. [...] Ostentar um logotipo, para um jovem, não é tanto querer alçar-se acima dos outros quanto não parecer menos que os outros. [...] levando à recusa de apresentar uma imagem de si maculada de inferioridade desvalorizada. [...] é por isso que a sensibilidade às marcas é exibida tão ostensivamente nos meios desfavorecidos. Por uma marca apreciada, o jovem sai da impessoalidade, pretende mostrar não uma superioridade social, mas sua participação inteira e igual nos jogos da moda, da juventude e do consumo. p. 50


Na sociedade de hiperconsumo, mesmo a espiritualidade é comprada e vendida. [...] Eis que a espiritualidade se tornou mercado de massa, produto a ser comercializado, setor a ser gerido e promovido. O que constituía uma barreira à explosão da mercadoria metamorfoseou-se em alavanca de seu alargamento. p. 132


O que antigamente era vivido como um destino de classe é experimentado como uma humilhação, uma vergonha individual. É assim que, no coração do planeta beestar, aumenta o sentimento de ser inútil no mundo, de ter sido usado e depois jogado fora, de ter falhado em tudo. p. 169


Uma nova etapa é transposta a partir dos anos 1920. Enquanto os suportes se multiplicam, os anúncios exploram temáticas e registros inéditos, que continuam em vigor em nossos dias: elogio da mulher moderna, maquiada e sedutora, culto da auto-realização, do conforto e dos lazeres, sacralização da juventude. p. 173


[...] a publicidade criou uma nova cultura cotidiana baseada numa visão mercantilizada da vida. p. 174


[...] o desaparecimento dos espaços desprovidos de signos comerciais. p. 175


[...] os objetivos da publicidade mostram-se mais ambiciosos; esta já não se contenta em ser o realce dos produtos, ei-la que exalta visões do mundo, passa mensagens, valores e idéias com vista à fidelização dos clientes. p. 175-176


A publicidade propõe, o consumidor dispõe: ela tem poderes, mas não tem todos os poderes. E, se ela provoca frustrações, é apenas nos limites do que corresponde aos gostos do consumidor. p. 178


A publicidade reflexo:


[...] alfabetizadas nas linguagens dos bens mercantis, alimentadas com o leite da mercadoria-espetáculo, as massas são de imediato consumistas, espontaneamente sedentas de compras e de evasões, de novidades e de maior bem-estar. p. 180


[...] a publicidade hipermoderna procura menos celebrar o produto que inovar, comover, distrair, rejuvenescer a imagem, interpelar o consumidor. p. 181-182


Ela educava o consumidor, agora o reflete. p. 182


[...] as prioridades do fazer vêm relativizar ou compensar as frustrações do ter. p. 189


Não existe mais subcultura análogo à dos guetos e da pobreza tradicional. Mesmo excluída do universo do trabalho, a população dos centros de cidade e dos subúrbios desqualificados partilha os valores individualistas e consumistas das classes médias, a preocupação com a personalidade individual e auto-realização. [...] importa cada vez mais, para o indivíduo, não ser inferiorizado, atingido em sua dignidade. É assim que a sociedade de hiperconsumo é marcada tanto pela progressão do sentimentos de exclusão social quanto pela acentuação dos desejos de identidade, de dignidade e de reconhecimento individual. p. 192


Desprezando a cultura operária e a cultura do trabalho, rejeitando a política e o sindicalismo, os jovens "marginalizados" constroem sua identidade em torno do consumo e da "grana", da fanfarronada e da vigarice. p. 193


Se os desvios juvenis são uma das conseqüências da falência dos movimentos sociais, são também resultado de um mundo social desestruturado e privatizado pelo império do consumo mercantil, por novos modos de vida centrados no dinheiro, pela vida no presente, pela satisfação imediata dos desejos. p. 193


[...] os excluídos do consumo são eles próprios uma espécie de hiperconsumidores. Privados de verdadeira participação no mundo do trabalho, atormentados pela ociosidade e pelo tédio, os indivíduos menos favorecidos buscam compensações no consumo, na aquisição de serviços ou de bens de equipamento, mesmo que seja, [...] em detrimento do que é mais útil. p. 194


[...] não se sentem pobres apenas porque subconsomem bens e lazeres, mas também porque superconsomem as imagens da felicidade mercantil. p. 194


[...] o desemprego mudou de sentido: não sendo mais assimilado a um destino de classe, ele remete a um fracasso ou a uma insuficiência pessoal, freqüentemente acompanhada de auto-estigmatização. [...] Quanto mais as condições materiais gerais melhoram, mais se intensifica a subjetivização-psicologização da pobreza. p. 199-200


Em uma cultura entregue aos prazeres sensoriais e aos desejos de gozo aqui e gora, é toda a vida social e individual que, ao que nos dizem, está envolta num halo "orgiástico" [...] esgotamento do princípio de individualização e escalada correlativa da tribalização afetiva, das emoções vividas em comum, das sensibilidades coletivas. p. 209


Não é as novas epifanias do Mestre dos prazeres que nos é dado assistir, mas à encenação lúdico-hedonista de seus funerais. Nada de reencarnação dos valores orgiásticos, mas a invenção do cosmo paradoxal da hipermodernidade individualista. p. 211


O universo do lazer contemporâneo [...] é o da privatização dos prazeres, da individualização e da comercialização do tempo livre [...] a lógica que triunfa é a do tempo individualista do lazer-consumo. p. 212


O hiperindivíduo não é dionisíaco; consome ambiência dionisíaca instrumentalizando o coletivo com vista a satisfações privadas. p. 212


[...] se o lazer pode reafirmar coesão comunitária, é importante sublinhar-lhe o caráter lábil, efêmero, muitas vezes epidérmico. [...] o que o lazer refabrica é menos a preeminência do coletivo sobre o individual que uma divisão pacífica do social, feita de dispersão individualista dos gostos e dos comportamentos. p. 212-213


Os lazeres e os templos do consumo são fatores de comunhão? A verdade é que eles relacionam mais o indivíduo consigo mesmo do que provocam a união dos membros de uma mesma comunidade. p. 216


A felicidade não é, evidentemente, uma "idéia nova". Nova é a idéia de ter associado a conquista da felicidade às "facilidades da vida", ao Progresso, à melhoria perpétua da existência material. p. 217


Com os modernos, a felicidade da humanidade identifica-se com o progresso das leis, da justiça e das condições materiais de existência [...] não é mais a mudança de si que aparece como o caminho certo da felicidade, mas a transformação do mundo, a atividade fabricadora capaz de aliviar as penas, embelezar a vida, proporcionar cada vez mais satisfações materiais. p. 217


Centrado na acumulação dos bens, na eletrificação e na mecanização do lar, esse modelo de conforto é de tipo tecnicista-quantitativo e é sonhado como o que apaga as sujeições, como prótese miraculosa que traz higiene e intimidade, ganho de tempo e facilidade de vida, distração e entretenimento passivos. [...] Depois do conforto-luxo [...] o [...] conforto-liberdade ("a técnica liberta mulher") [...] Vitrine do progresso técnico e da racionalização do cotidiano, instrumento de uma vida melhor, o conforto tornou-se a figura central da felicidade-repouso, dos gozos fáceis possibilitados pelo universo técnico-mercantil. p. 218-219


Alastra-se uma nova espécie de conforto que se identifica com a abundância informacional, as interações virtuais, a acessibilidade permanente e ilimitada. p. 227


[...] o design contemporâneo exibe uma nova predileção pelos objetos gordinhos, de linhas ovóides, criando um universo suave, maternal, acolhedor. [...] reconcilia-se com os arredondados. p.230


[...] a ambição do design não é mais tanto de erigir símbolos de modernidade triunfal quanto um meio ambiente acolhedor e reconfortante, um conforto hipermoderno que concilia o funcional e a experiência vivida emocional, a eficácia e as necessidades psíquicas do homem. p. 232


[...] Já não se fazem comilanças, fazem-se regimes. As prateleiras dos supermercados estão carregadas de alimentos biodinâmicos, de produtos com pouca gordura, "pró-bióticos" e outros alimentos saudáveis. Quanto as intermináveis refeições de domingo, elas nos causam horror. Comer com fartura [...] deixou de ser uma paixão popular, a época aprova as refeições equilibradas, a alimentação leve benéfica à saúde e à magreza. [...] Cada vez mais a alimentação é considerada como um meio de prevenção ou mesmo de tratamento de certas doenças: a saúde, a longevidade, a beleza tornaram-se os novos referenciais que enquadram a relação com a mesa. p. 233


No entanto, é nesse exato momento que se propagam como um maremoto as bulimias e outras anarquias alimentares. De um lado, os valores da magreza, de saúde e de equilíbrio alimentar [...] do outro, multiplicam-se as compulsões e frenesis do neocomedor. p. 235


Mas nada disso acena à alegria dionisíaca. Bem ao contrário. Os excessos à mesa eram de origem coletiva, os nossos são individuais; eram festivos, são neuróticos; constituíam uma figura da felicidade coletiva, agora culpabilizam os indivíduos, tomando um caráter vergonhoso e patológico em uma cultura que reconhece apenas o controle de si. p. 235


[...] vemos a alimentação conquistada, por sua vez, pela forma-moda, que transforma a refeição em [...] divertimento total, co comidas inéditas, [...] decoração design, música ao gosto do dia. p. 236


O emocionalismo hipermoderno não é dionisíaco, é onifóbico. p. 238


A que se deve semelhante "moderação" libidinal? Como é possível que, em uma sociedade hipersexualista, a errância dos corpos não seja mais difundida? […] Trata-se, em primeiro lugar, do peso do ideal relacional-afetivo e, em seguida, da exigência primordial de reconhecimento subjetivo. p. 246


A despeito das incitações perpétuas a "curtir", Narciso venceu Dionísio. p. 248


Por toda parte, as festas são dominadas pela lógica dos lazeres, dos espetáculos e do consumo: a festa tradicional ou memorial foi substituída pela festa consumista ou frívola centrada no presente. p. 253


Na sociedade de hiperconsumo, triunfa a festa sem passado nem futuro, a hiperfesta auto-suficiente, presenteísta, no grau zero do sentido, apenas alimentada pelas paixões de distração e de consumo. p. 254


Prazer de encontrar-se "entre si", atar laços cúmplices e conviviais com semelhantes, declarar um orgulho identitário, a festa funciona como instrumento de autodefinição e de afirmação de si num tempo em que as identidades coletivas já não estão dadas e admitidas de uma vez por todas. O indivíduo se busca muito mais do que se perde: eis o princípio da festa reativado por uma exigência de "orgulho" neo-individualista, de enraizamento e de reidentificação de si. p. 256


Construir-se, destacar-se, aumentar suas capacidades, a "sociedade do desempenho" tende a tornar-se a imagem prevalente da hipermodernidade. p. 260


As antigas utopias estão mortas, o que "inflama" a época é um estilo de existência dominado pela "vitória", o sucesso, a competição, o eu de alto rendimento. Ser o melhor, destacar-se, superar-se: eis a sociedade democrática "convertida" ao culto do desempenho, "vetor de um desenvolvimento pessoal de massa". p. 264


O que torna o esporte-espetáculo altamente mobilizador de afeto, é, de um lado, sua capacidade de criar suspense entre quase iguais que se enfrentam; do outro, seu poder de criar ou de intensificar sentimentos de inclusão grupal. p. 274


Mais o que à desencarnação dos prazeres, assiste-se ao advento de uma nova cultura do corpo e do bem estar. O bem-estar sensação. O bem estar moderno era funcional, objetivista, mecanicista: o da fase III aparece como um bem-estar qualitativo e reflexivo, centrado no corpo vivido, na atenção a si próprio, no aumento do registro das sensações íntimas (relaxamento, respiração, visualização, forma, calma e equilíbrio). O balanço é pouco duvidoso: na sociedade de hiperconsumo, o "heroísmo" da superação de si é suplantado de modo bastante amplo pelas paixões narcísicas de saborear os prazeres do maior bem-estar, de sentir-se, muito simplesmente, bem. p. 283



Para além da desmaterialização do mundo, progride o que se poderia chamar um erotismo ampliado, polissensualista e estético, ávido de deleites qualitativos e de sensações renovadas em domínios cada vez mais vastos da vida. Quanto mais se propaga um certo "ascetismo" higienista, mais se intensifica uma dinâmica de psicologização e de estetização dos prazeres. p. 286


Nos períodos anteriores, predominava a norma da pudicícia; agora teríamos uma "liberdade imposta", uma "perseguição" inédita que nada mais é que a sexualidade e o "orgasmo obrigatório". p. 292


O imperativo de desempenho não está mais limitado à empresa e ao esporte, apoderou-se do planeta sexo. p. 293


Não é tanto a desimbolização e o colapso afetivo quanto a psicologização de massa da sexualidade e da vida de casal. […] não é tanto o sexo pelo sexo e o aumento relativo dos parceiros sexuais quanto a multiplicação das próprias histórias amorosas. Afinal, vai-se menos de aventura sexual em aventura sexual que de história amorosa em história amorosa. p. 296


Consumismo sentimental que é tudo, salvo eufórico, uma vez que acompanhado de sentimento de vazio, de decepção, de rancor, de feridas íntimas. Então, se há um consumo hedonista, existe também uma dimensão sismográfica do hiperconsumo dominado pela alternância repetida da felicidade e da tristeza, da exaltação e do abatimento. p. 296-297


A novidade estaria menos na promoção do sexo-proeza narcísico que na de um novo ideal de virilidade, forçado a levar em conta a dimensão do desejo feminino. […] a satisfação feminina é prescrita. p. 297-298


Mais que uma injunção ao desempenho, é um ideal de reciprocidade hedonista, acompanhado de um modelo de comunicação interpessoal, que qualifica a cultura erótica na hipermodernidade. p. 298


Nesse universo hiperconcorrente, apenas alguns tiram proveito da liberalização dos costumes, sendo a maioria condenada ao isolamento, à frustração, à vergonha de si. Como se o "horror econômico" não bastasse, eis que agora ele é simultaneamente horror libidinal. […] Longe de ter favorecido a felicidade dos sentidos, a revolução sexual provocou um impressionante desenvolvimento das frustrações e do mal estar. Liberação dos corpos, derrelição dos seres. p. 300


O universo das mídias […] não para de exibir insolentemente e em imensa escala tudo que existe de invejável neste mundo. p. 312


Não se consomem apenas coisas, superconsome-se o espetáculo hiperbólico da felicidade de personagens celebróides. p. 313



Tudo que é agressivo é eliminado em favor do "frescor de viver" e das volúpias a serem colhidas sem a preocupação com outrem. A publicidade […] funciona como […] instrumento de legitimação e de exacerbação dos gozos individualistas. Não nos focaliza no outro, mas em nós mesmos. Ninguém é ameaçado, ninguém é magoado, todo mundo tem o direito de aspirar à felicidade por intermédio dos bens mercantis. p. 313


Na sociedade do hiperconsumo, a felicidade de outrem tornou-se um formidável objeto de consumo de massa aliviado dos tormentos da inveja. p. 315


Como observaram Adam Smith e Nietzsche, nada é mais insuportável que tomar consciência de que se é o único a sofrer. p. 315


As conversas da vida comum mostram […] essa suspensão do temor da inveja dos outros. […] Exibir as alegrias ganhou direito de cidadania: as férias podem ser "geniais", nossos filhos, "os mais bonitos", nossa profissão, "apaixonante", o que se viveu, "fantástico, fabuloso, incrível". Afinal, temos menos medo de desencadear os sentimentos de cobiça e de inveja que de fazer supor que não somos felizes. Se quiséssemos despertar deliberadamente a inveja de outrem, não agiríamos de maneira diferente. […] Ganhamos o direito de viver ignorando a inveja de outrem. p. 316


Com a extrema individualização dos costumes, prevalece o sentimento de que "eu sou passavelmente feliz, os outros não o são". p. 319


O medo da inveja dos próximos que pesava sobre as antigas culturas foi substituído por uma tendência ao aumento do sentimento de confiança mútua. p. 321


O "novo paradigma" é construído segundo o seguinte esquema silogístico: o que nos acontece é o espelho de nossa atitude interior; ora, podemos mudar e controlar nossa consciência; portanto, a felicidade nos pertence, é aprendida, está integralmente em nossas mãos, podemos ser tão felizes quanto decidimos sê-lo: esse é o credo incansavelmente repetido pelos mestres em espiritualidade e desenvolvimento pessoal. p. 352

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