Um livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive. (Padre Antônio Vieira)

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

SEMPRINI, Andrea. Multiculturalismo

 SEMPRINI, Andrea. Multiculturalismo. Tradução de Laureano Pelegim. São Paulo: EDUSC, 1999. 178 p. ISBN 85-86259-78-0



O aumento de poder da direita republicana aconteceu essencialmente por causa das problemáticas pós-políticas, emprestando temas da cruzada moral e espiritual. 42


... o multiculturalismo coloca a questão da diferença. Pode-se igualmente afirmar que ele lança a problemática do lugar e dos direitos da minoria com relação a maioria. Poderíamos finalmente argumentar que ele discute o problema da identidade e seu reconhecimento. 43


Uma Segunda interpretação do multiculturalismo privilegia sua dimensão especificamente cultural. Ela concentra sua atenção sobre as reivindicações de grupos que não têm necessariamente uma base "objetivamente" étnica, política ou nacional. Eles são mais movimentos sociais, estruturado em torno de um sistema de valores comuns, de um estilo de vida homogêneo, de um sentimento de identidade ou pertença coletivos, ou mesmo de uma experiência de marginalização. Com freqüência é esse sentimento de exclusão que leva os indivíduos a se reconhecerem [...]. 44


De acordo com uma perspectiva culturalista [...] os conflitos culturais podem ser resumidos em três áreas problemáticas: a educação; a identidade sexual e as relações interpessoais; as reivindicações identitárias. 45


As virtudes atribuídas à educação permitem compreender por que a escola transformou-se no centro de controvérsias multiculturais violentas. As polêmicas concentram-se em dois aspectos: a reforma dos textos e da grade curricular e a admissão de minorias à educação superior. 46


Os resultados da ação afirmativa mostraram-se medíocres. Admitidos por força da lei, sem todavia satisfazer todas as exigências, parte desses estudantes se adapta com dificuldades ao ambiente universitário e abandona os campi logo nos primeiros anos. A política de quotas não conseguiu aumentar significativamente o número de diplomados entre as minorias e restringiu o acesso de outros estudantes.

As conseqüências humanas e sociais dessa política são igualmente objeto de crítica. Para alguns estudantes, as condições facilitadoras de sua admissão na universidade criaram falta de confiança e perda de auto-estima. Elas podem também resultar em certa condescendência por parte de outros estudantes, que acabam considerando os membros das minorias mais como pessoas assistidas do que pessoas iguais a si. Esta imagem de estudantes "de segunda classe" difunde-se no mercado de trabalho e desvaloriza diplomas que são, na maioria dos casos, perfeitamente válidos. 49


Uma simples política administrativa não pode resolver o problema da auto-estima, nem substituí o estímulo dos pais, o apoio do grupo social e o encorajamento dos demais grupos. 51


O movimento feminista acusa a cultura dominante não somente de ter criado uma sociedade dominada por valores masculinos, mas de ter mascarado seu caráter sexuado, para assim fabricar valores gerais e "neutros". Paralelamente ao processo de objetivação da subjetividade masculina, a opinião e a contribuição das mulheres foram marginalizadas, reduzidas ao silêncio e por vezes ativamente reprimidas. 51-52


É precisamente seu caráter vago, quase impalpável, que torna difícil, na ausência de provas fatuais, a resolução de numerosos casos de assédio. 53


Na ausência destes últimos, o que se julga é a personalidade das partes em causa, que são intimadas a "objetivar" sua boa fé fazendo uma exibição dos aspectos mais íntimos de suas vidas particulares.

O assédio sexual é, antes de tudo, uma forma de importunação, ou seja, uma prática de submissão e humilhação cujo objetivo é naturalmente o sexo, mas é também o meio. 54


Enquanto a geração anterior havia se batido para eliminar toda forma de regulamento e instaurar uma liberdade absoluta nos campi, assiste-se atualmente ao ressurgimento dos códigos de conduta formulado e aplicado pelos próprios estudantes. 55


... esses códigos ilustram as mesmas tendências operantes na sociedade americana. Em primeiro lugar, uma dificuldade crescente em negociar as relações interpessoais, estabelecer um correto distanciamento entre os indivíduos. Em segundo lugar, uma tendência paralela a recorrer a instrumentos formais, códigos de conduta ou simplesmente o código civil, para resolver esses problemas de distanciamento. Enfim, a tendência a moralizar os problemas de relação e a individualizar os problemas sociais, procurando no vocabulário da ética e na regulação das relações interpessoais a solução para uma crise que é de âmbito cultural e de civilização. 56


Outros grupos não são redutíveis a qualquer base étnica. É principalmente o caso dos homossexuais e lésbicas, grupos religiosos e seitas e, mais geralmente, associações de indivíduos portadores de algum estigma físico ou social. 58


A emergência de uma minoria depende não somente do fato, para o grupo em questão, de chegar a se perceber como uma "minoria", ou seja, como uma formação social apresentando suficientes traços comuns para adquirir homogeneidade e uma visibilidade interna aos olhos de seus membros, mas igualmente pelo fato de conquistar uma visibilidade externa e chegar a ser percebido como "minoria" pelo espaço social circundante. 59


A expressão "politicamente correto" (politically correct) ou "pc", foi tomada do jargão stalinista dos anos 50, que designava a obediência irrestrita à linha política ditada pelo comitê central. [...] A referência ao stalinismo não é sem razão e contribui para o sucesso da expressão, conferindo-lhe conotações detestáveis. Qualificar uma atitude ou comportamento de "pc" subentende um julgamento de intolerância, o endossamento irrefletido de valores e escolhas feitas por outros, limitação da liberdade de expressão e de qualquer manifestação de uma atitude contraditória. O "pc" tornou-se assim um sinônimo de conformismo e de indolência e utiliza-se com convicção a expressão "politicamente incorreto" para distinguir as propostas originais e pessoais que não temem incomodar ou ofender se preciso for. 61


O acúmulo desses excessos alertou numerosos intelectuais contra esse novo "patrulhamento lingüístico" que ameaçava, a seus olhos, questionar o intocável princípio da liberdade de expressão. 63


O movimento estudantil dos anos 60 havia sido, naquele tempo, acusado de todos os horrores: orgias sexuais, "viagens" psicodélicas, promiscuidade, subversão moral, simpatia pelo comunismo... Hoje ele é lamentado por muitos como uma experiência única de mobilização e engajamento social. 64


Ela apenas registra uma situação. Ela é, por definição, neutra e se situa além do campo ideológico. Pensar que a linguagem é cúmplice ou responsável pelas situações que ela apenas designa significa enganar-se de direção na cadeia de causas e preocupar-se mais com os efeitos do que com as causas. [...] Não é modificando-se à força a linguagem que se conseguirá modificar as realidades sociais que ela simplesmente reproduz. Quando as relações reais de poder se modificarem, o instrumento lingüístico as registrará "naturalmente" e sem demora. 66


A linguagem é um instrumento que afeta profundamente o nosso conhecimento e representações do mundo. [...] é identificada não apenas como lugar onde as relações de dominação e exclusão se cristalizam, mas também onde essas relações são negociadas, produzidas e reproduzidas. 67


Longe de se limitar a registrar as realidades, a linguagem contribui para sua produção, modelando a percepção que uma sociedade tem de si mesma e dos grupos que a compõem. A cristalização do sentido operada pela linguagem tem uma historicidade. Esta passa por questionamentos a todo momento, nas ações cotidianas que permitem às personagens sociais produzirem versões mais ou menos conflitantes da realidade. A alteração de uma palavra pode influenciar a cognição das personagens para outras direções. Pode fazer surgir diferentes descrições ou relatos alternativos. Ela pode, finalmente, dirigir a atenção para zonas do campo social que ficam na sombra. 67





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