Um livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive. (Padre Antônio Vieira)

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? e outros ensaios.

AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Argos: Chapecó, 2009. 92 p. 


O termo latino dispositio, do qual deriva o [...] termo dispositivo, vem, portanto, para assumir em si toda a complexa esfera semântica da oikonomia teológica. Os dispositivos de que fala Foucault estão de algum modo conectados com esta herança teológica, podem ser de alguma maneira reconduzidos à fratura que divide e, ao mesmo tempo, articula em Deus ser e práxis, a natureza ou essência e a operação por meio da qual ele administra  e governa o mundo das criaturas. O termo dispositivo nomeia aquilo em que e por meio do qual se realiza uma pura atividade de governo sem nenhum fundamento no ser. Por isso os dispositivos devem sempre implicar um processo de subjetivação, isto é, devem sempre produzir o seu sujeito. p. 38


referência a uma oikonomia, isto é, a um conjunto de práxis, de saberes, de medidas, de instituições cujo objetivo é gerir, governar, controlar e orientar, num sentido que se supõe útil, os gestos e os pensamentos dos homens. p. 39 


chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes.  40… [...] conexão com o poder [...] mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e [...] a própria linguagem, que talvez é o mais antigo dos dispositivos. p. 40-41 


temos assim duas grandes classes, os seres viventes (ou as substâncias) e os dispositivos. E, entre os dois, como terceiro, os sujeitos. Chamo sujeito o que resulta da relação e, por assim dizer, do corpo a corpo entre os viventes e os dispositivos.41


um mesmo indivíduo, uma mesma substância, pode ser o lugar dos múltiplos processos de subjetivação: o usuário dos telefones celulares, o navegador na internet. p. 41


ao ilimitado crescimento dos dispositivos no nosso tempo corresponde igualmente disseminada proliferação de processos de subjetivação. 41


isso pode produzir a impressão de que a categoria da subjetividade no nosso tempo vacila e perde consistência; mas se trata, para ser preciso, não de um cancelamento ou de uma superação, mas de uma disseminação que leva ao extremo o aspecto de mascaramento que sempre acompanhou toda identidade pessoal. 41-42


não seria [...] errado definir a fase extrema do desenvolvimento capitalista que estamos vivendo como uma gigantesca acumulação e proliferação de dispositivos. Certamente, desde que apareceu o homo sapiens havia dispositivos, mas dir-se-ia que hoje não haveria um só instante na vida dos indivíduos que não seja modelado, contaminado ou controlado por algum dispositivo. De que modo, então, podemos fazer frente a esta situação, qual a estratégia que devemos seguir no nosso cotidiano corpo a corpo com os dispositivos? Não se trata simplesmente de destruí-los, nem, como sugerem alguns ingênuos, de usá-los de modo certo. 42


vivendo na Itália [...] num país cujos gestos e comportamentos dos indivíduos foram remodelados de cima abaixo pelo telefone celular (chamado familiarmente de "telefonino"), eu desenvolvi um ódio implacável por este dispositivo, que deixou ainda mais abstratas as relações entre as pessoas. 42-43.


Na raiz de todo dispositivo está, deste modo, um desejo demasiadamente humano de felicidade, e a captura e a subjetivação deste desejo, numa esfera separada, constituem a potência específica do dispositivo. 44


a estratégia que devemos adotar no nosso corpo a corpo com os dispositivos não pode ser simples, já que se trata de liberar o que foi capturado e separado por meio dos dispositivos e restituí-los a um possível uso comum [...] profanação. 44


a profanação é o contradispositivo que restitui ao uso comum aquilo que o sacrifício tinha separado e dividido. 45


o dispositivo é, antes de tudo, uma máquina que produz subjetivações e somente enquanto tal é também uma máquina de governo. 46


o que define os dispositivos com os quais temos que lidar na atual fase do capitalismo é que estes não agem mais tanto pelo produção de um sujeito quanto por meio de processos que podemos chamar de dessubjetivação. 47


aqui se mostra a futilidade daqueles discursos bem intencionados sobre a tecnologia, que afirmam que o problema dos dispositivos se reduz àquele de seu uso correto. Esses discursos parecem ignorar que, se a todo dispositivo corresponde uma determinado processo de subjetivação (ou, neste caso, de dessubjetivação), é totalmente impossível que o sujeito do dispositivo o use "de modo correto". Aqueles que têm discursos similares são, de resto, o resultado do dispositivo midiático no qual estão capturados. 48


a singular inquietude do poder exatamente no momento em que se encontra diante do corpo social mais dócil e frágil jamais constituído na história da humanidade. É por um paradoxo apenas aparente  que o inócuo cidadão das democracias pós-industriais [...] que executa pontualmente tudo o que lhe é dito e deixa que os seus gestos cotidianos, como sua saúde, os seus divertimentos, como suas ocupações, a sua alimentação e como seus desejos sejam comandados e controlados por dispositivos até nos mínimos detalhes, é considerado pelo poder - talvez exatamente por isso - como um terrorista virtual. 49


aos olhos da autoridade [...] nada se assemelha melhor ao terrorista do que o homem comum. 50


o problema da profanação dos dispositivos - isto é, da restituição ao uso comum daquilo que foi capturado e separado nesses - é, por isso, tanto mais urgente. Ele não se deixará colocar corretamente se aqueles que dele se encarregam não estiverem em condições de intervir sobre os processos de subjetivação, assim como sobre os dispositivos, para levar à luz aquele Ingovernável, que é o início e, ao mesmo tempo, o ponto de fuga de toda política. 50-51


a contemporaneidade [...] é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias [...] é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela. 59


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