Um livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive. (Padre Antônio Vieira)

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

DINIZ, Marli. Os donos do saber: profissões e monopólios profissionais.

DINIZ, Marli. Os donos do saber: profissões e monopólios profissionais. Rio de Janeiro: Revan, 2001. 192 p. 

Introdução

Um dos aspectos mais característicos da expansão e diversificação da estrutura ocupacional no Brasil é o crescimento do número de ocupações que requerem o nível superior de educação": em 1950 eram menos que 10; em 1980 já eram 114 profissões, "das quais 76 estavam regulamentadas". A "expansão [...] é mais impressionante quando vista sob vista sob o ângulo do contingente de profissionais no mercado de trabalho: em 1979 os trabalhadores com nível superior constituíam apenas "3,5% da população economicamente ativa, contra 5,35 em 1985". "Paralelamente ao surgimento de novas profissões, aquelas chamadas de tradicionais – medicina, engenharia e direito – foram se fragmentando em inúmeras especialidades, eventualmente "suplantados por dezenas de especialistas". 13

Por trás desta explosão está a expansão vertiginosa do sistema de ensino superior, principalmente a partir da reforma universitária de 1968. 13

Anseio dos jovens por diplomas; anseio maior do que a exigência da divisão social do trabalho ou do mercado; começa a surgir temas como "inflação de diplomas; um "alarme contra a desvalorização dos graus acadêmicos"; surge também o termo "credencialismo", para denunciar o ensino superior como mera fábrica [...] para um mercado de trabalho muito competitivo, independente do conteúdo da educação".  13

"Processo de proletarização das profissões [...] assalariamento das profissionais liberais"; "o capital começa a "subordinar" as "ocupações que há poucas décadas eram "autônomas [...] os próprios profissionais passaram a recorrer a imagem de uma 'época dourada', principalmente os médicos para lamentar a 'mercantilização' da medicina e a perda da antiga dignidade da profissão, e os engenheiros para protestar contra a sua crescente subordinação a hierarquias empresariais heterônomas. Aparentemente, investir numa educação longa e dispendiosa já não rendia os dividendos que todos esperavam [...] estariam os profissionais descendo a ladeira que os levaria, mais cedo ou mais tarde, às mesmas condições daquela imensa parcela da força-de-trabalho  que, além de assalariada, perdeu o controle sobre o processo do seu próprio trabalho?"13-14

Mas quais foram as respostas dos profissionais para influenciar esse destino?

"Etapas de profissionalização"

Algumas teorias ajudam a explicar a organização das profissões.

Funcionalistas e às histórico-comparativas


CAPÍTULO I Profissões: autonomia e controle burocrático

Para os funcionalistas, o problema central era demonstrar como os valores associados ao desempenho dos papéis ocupacionais estavam integrados ao sistema valorativo da sociedade e em identificar as funções que estes papéis desempenhavam para o sistema social mais amplo. Destas questões foi gerada toda uma tradição específica de pesquisa voltada para a identificação [...] de atributos definidores de toda e qualquer profissão (DINIZ, 2001, p. 17).

Para os funcionalistas, a posição de importância das profissões na sociedade industrial moderna é única. Não é o capitalismo ou a livre empresa que constituem as características mais salientes destas sociedades, mas a emergência de grupos profissionais" (18-19)

Para eles "uma profissão é um agrupamento de papéis ocupacionais que se distinguem por determinados elementos específicos" [...] O profissional é um especialista técnico em virtude do seu domínio tanto da tradição quanto das habilidades necessárias à sua aplicação". [...] alto grau de conhecimento sistematizado, bem como o altruísmo expresso na orientação básica do profissional para o interesse da comunidade antes do que para o interesse individual" (p. 19-20).

Assim, "profissionalismo é um problema de grau e de consistência entre os diversos elementos; e uma ocupação pode se mover tanto para o polo de menor quanto para o de maior profissionalismo ao longo do contínuo composto pelas variáveis definidoras". (p. 20)

Para os funcionalistas as "características formais das profissões têm em conjunto a função de garantir o controle ocupacional - autonomia e auto-regulação; controle sobre o treinamento; exame e qualificações; procedimentos;

O processo de profissionalização é um "processo de consolidação" de uma "assimetria da especialização" que implica uma ordem ou sequência temporal de eventos. Por exemplo, para Caplow (1966) a criação de associações profissionais seria o primeiro evento na sequência" em busca de "consenso normativo dentro da comunidade profissional", para "regular as relações com clientes e com os colegas". 21

O pleno desenvolvimento das características que distinguem as profissões seria alcançado por ocupações que chegam ao último  estágio de do processo de profissionalização do qual a primeira - e clássica - versão empírica foi determinada por Wilenski (1970): 

  1. A ocupação se torna trabalho em tempo integral;

  2. criam-se escolas e base de conhecimento ampla e complexa;

  3. criam-se associações profissionais, que obtêm do Estado, por meio de intensa atividade política, legislação que autoriza a prática apenas aos licenciados e penalização à prática não licenciada;  

  4. estabelecimento de regras de comportamento e de conduta profissional – um código de ética - para regular as relações do profissional com seus clientes e com seus pares. (p. 21)


  Em síntese, os atributos mais recorrentes das profissões são:  

  1. presença de um corpo de conhecimento especializado, sistematiza e abstrato; 

  2. autonomia do exercício profissional; 

  3. solidariedade com a comunidade profissional;

  4. auto-regulação;

  5. procedimentos de credenciamento; 

  6. autoridade sobre os clientes e códigos e ética; (p. 22).


"As teorias funcionalistas foram sendo superadas por concepções macro-históricas sobre o surgimento e desenvolvimento das profissões", por não atentarem para as "condições sociais mais gerais" em que ocorre o processo de profissionalização. 24 

Não é difícil indicar as fontes estruturais desta diferença conceitual. Inglaterra e Estados Unidos tinham em comum uma economia de mercado, um Estado comparativamente passivo. [...] Inversamente, nos Estados burocráticos centralizados da Europa Continental o processo de profissionalização foi iniciado por reis, príncipes, patrícios e pelo Estado [...] em princípios do séc. XIX, as funções e a esfera de atividade" de "grupos profissionais estavam regulados pelo Estado". 24-25

Em particular, status e prestígio profissionais são alcançados mais frequentemente  pela frequência a instituições estatais de ensino superior de elite, sobretudo porque são estas as que asseguram o acesso a posições de comando no serviço público. [...] A identidade profissional [...] era dada, não pela ocupação exercida, mas pelo status da educação de elite, não importando a especialidade particular (Ben-David, 1963). p. 25

"A forma como as profissões se desenvolveram na Alemanha demonstra de maneira mais clara as diferenças entre o que significa o termo neste país e nos Estados Unidos. Na Alemanha, uma parte importante da profissionalização ocorre dentro da administração pública; o funcionalismo público veio a ser composto crescentemente por profissionais burocratas academicamente treinados, que determinam amplamente as regras de recrutamento, o tipo de treinamento universitário necessário, o tipo de exame a ser aplicado e o serviço preparatório requerido para a admissão. Sua autonomia se baseia no conhecimento profissional e não no desempenho do cargo e gozam de uma significativa autonomia coletiva" para com os com "clientes e os dirigentes públicos". 25

 A profissionalização na Alemanha - dentro e fora do funcionalismo público - foi baseada desde  o começo na regulação pelo Estado do exame e do treinamento acadêmicos. Por outro lado, a burocracia central não suprimiu as emergentes associações profissionais dos médicos, advogados e engenheiros; ao invés disso, houve uma estreita cooperação entre associações profissionais relativamente autônomas e burocracias governamentais, uma simbiose que não impediu mas, ao contrário, facilitou a profissionalização. 25

O funcionalismo público tornou-se mesmo na Alemanha uma referência normativa para as profissões. [...] A importância da burocracia estatal como referência profissional pode ser bem aquilatada pelo seguinte episódio: em 1870, o presidente da Associação de Engenheiros exigiu que um exame público, típico do funcionalismo estatal, se tornasse a base para a promoção e a estabilidade ocupacionais dos engenheiros. 25-26

Ou seja, "profissões desenvolvidas como burocracias do Estado, e dessa forma possuem laços muito mais estreitos com a administração pública do que com as profissões na Inglaterra ou nos EUA" segundo Larson (1977 apud DINIZ, 2001, p. 27). 

Assim, embora a teoria funcionalista aponte uma "incompatibilidade básica entre burocracia e profissões", por outro lado, a visão "histórico-comparativa" aponta como a "ideologia do profissionalismo", que não se trata de "um conceito genuinamente sociológico''. Também criticam a "burocracia" e as "profissões" não são "modelos contraditórios" como apontam os funcionalistas. 27



CAPÍTULO II  Monopólios profissionais, classe e Estado

CAPÍTULO III Desprofissionalização, proletarização: declínio das profissões?

CAPÍTULO IV A constituição da profissão da Engenharia e Economia no Brasil


A formação e o desenvolvimento da engenharia e da economia no Brasil constituem um contraponto valioso para avaliação das teorias expostas nos capítulos anteriores. Aqui temos duas profissões, uma tradicional - a engenharia - com raízes no séc. XIX, outra 'moderna', mas ambas com as características clássicas mencionadas na literatura: um corpo de conhecimento abstrato, escolas, associações profissionais e código de ética. Entretanto, as condições históricas em que se desenvolveram o 'projeto profissionalizante' da engenharia e da economia combinam traços do modelo englo-americano e do modelo europeu continental, sobretudo no que diz respeito à intervenção reguladora do Estado. Se o conteúdo destes 'projetos profissionalizantes', as formas organizacionais das profissões e o contexto 'liberal' em que se desenvolveram remetem ao modelo anglo-americado, o padrão final de profissionalização 'de cima para baixo' operada pelo Estado Novo - e cuja fórmula legal permaneceu como sua herança - lembram, evidentemente, a experiência européia continental. Este modelo brasileiro, híbrido, serve, por outro lado, para ressaltar uma variante histórica particular do papel do Estado na constituição das profissões. 49

Finalmente, a fragilidade - se não a inexistência - da base cognitiva da engenharia brasileira até a segunda década do presente século, e as pretensões dos engenheiros por monopólio de serviços com base em credenciais acadêmicas tecnicamente irrelevantes para o trabalho, mostram bem que os projetos profissionais são já em suas origens projetos de poder; os fatores cognitivos e normativos são recursos estratégicos nestes projetos, mas não são determinantes. 50


Pelo ângulo do ensino e da concessão de títulos formais pode-se datar de 1958 o nascimento da engenharia no Brasil. Neste ano, com a criação da Escola Central, o estudo da engenharia civil desligou-se do currículo das escolas militares, embora a Escola permanecesse sob o controle do Ministério da Guerra. A separação definitiva viria em 1873 com a transformação da Escola Central em Escola Politécnica do Rio de Janeiro, destinada exclusivamente à formação de engenheiros civis. Em 1875 é criada a Escola de Minas de Ouro Preto, a após a proclamação da república expande-se o número de escolas de engenharia: a Politécnica de São Paulo (1894), a do Recife (1895), a Escola Mackenzie, também em São Paulo (1896) e a Politécnica de Porto Alegre (1897). 50



A formação profissional oferecida nestas escolas era, entretanto, deficiente porque excessivamente teórica e pouco prática. Veja-se, por exemplo, o currículo da Escola Central no ano de sua criação: dos seis anos de estudo, os quatro primeiros eram dedicados às matemáticas e às ciências naturais, restringindo-se aos dois últimos as matérias propriamente profissionais num programa livresco e enciclopédico que pretendia cobrir as

diversas especialidades. Ao fim do 4º ano os alunos tinham direito ao título de bacharel em Matemática, Física e Ciências Naturais; ao fim dos seis anos de curso completo recebiam o grau de doutor, certamente uma manifestação do "bacharelismo" tão valorizado na sociedade brasileira. De resto, o ensino livresco e o apreço pelos títulos acadêmicos tanto harmonizavam-se com o desprezo pelas atividades práticas - associadas freqüentemente

ao trabalho servil - quanto ajustavam-se à realidade de uma economia agroexportadora baseada no trabalho escravo, na qual não havia lugar para as profissões técnicas.As sucessivas reformas dos currículos da Politécnica do Rio de Janeiro (em 1890, 1896, 1901, 1911, 1915 e 1925) e das demais escolas não remediariam o caráter excessivamente teórico do ensino; a de 1890, por influência dos positivistas, tentou eliminar do currículo os cursos científicos de matemática e física, mas encontrou forte resistência no corpo docente da Politécnica; a de 1896, já restabelecidos os cursos científicos introduziu o de Engenharia Industrial, com duração de três anos, sem que houvesse indústria no país. Continuaram a ser concedidos os títulos de bacharel e de doutor em matemática e ciências. 51


Desta forma, quando o "boom" da cultura cafeeira na segunda metade do séc. XIX passou a exigir melhoria e expansão dos transportes, e a urbanização incipiente, a requerer obras de infra-estrutura, o país encontrava-se numa situação curiosa: tinha escola para formação de engenheiros, mas não engenharia. Das ferrovias ao esgoto sanitário; dos palacetes às pontes, todos os grandes projetos e obras de engenharia e da construção civil de grande porte - estações ferroviárias, instalações fabris - dependeram do trabalho técnico de estrangeiros - sobretudo ingleses, e depois americanos - que traziam novos materiais e tecnologia. O engenheiro nacional participava das obras virtualmente como aprendiz. Também na Inglaterra e nos Estados Unidos - ao contrário do que ocorria na França e na Alemanha - pelo menos até o final do séc. XIX o treinamento prático (apprenticeship) era a via principal de formação do engenheiro, dada a inexistência de cursos formais. O que distinguia a situação brasileira na época era o fato de lentes, bacharéis e doutores da Escola Central e depois da Politécnica trabalharem sob orientação dos "práticos" ingleses

ou americanos, numa subversão curiosa do credencialismo.



Em particular a construção de estradas de ferro, principalmente a partir de 1860 foi a primeira solicitação econômica de vulto a que a engenharia nacional teve de responder. Sendo o Estado o maior contratante, era natural que o serviço público constituísse o mercado de trabalho por excelência dos engenheiros nacionais. Os primeiros empregos foram abertos pelo Decreto 2.911, de 10 de maio de 1862, que criou o Corpo de Engenheiros Civis no Ministério da Agricultura, com quarenta vagas; segundo o decreto, todas as obras públicas deveriam ser orçadas, aprovadas e fiscalizadas pelos engenheiros do Corpo. Mas foram as ferrovias o maior empregador dos engenheiros nacionais: 75% de todos eles por volta de 1880, nem todos no serviço público, porque várias ferrovias eram exploradas por companhias estrangeiras (São Paulo Railway, Brazil Railway Co., Cie. Générale des Chemins de Fer du Brésil, entre outras) por concessão do Estado. Outros setores de prestação de serviços públicos - gás, transporte urbano, energia elétrica - também contavam com a participação de capital estrangeiro, e as companhias organizadas para explorá-las (Light, Bond & Sfiaré, Botanical Garden Rail Road, entre outras) constituíam também mercado significativo de emprego para os engenheiros nacionais. p conjunto de obras de engenharia, ao propiciarem atividades intermitentes, passíveis de serem executadas por contratos de empreitada, permitiam também o exercício da engenharia como profissão liberal, mas há fortes indicadores de que os melhores empregos estavam na burocracia do Estado e nas companhias estrangeiras, nas quais não raro os engenheiros nacionais ocupavam altos cargos de gerência. 51-52


Um exemplo ilustrativo da carreira de um engenheiro bem-sucedido da época é a de Aarão Reis (1853-1936), chefe da comissão que em 1894 planejou e construiu Belo Horizonte; doutor em Ciências Físicas e Matemática pela Escola Central em 1874, inicia sua carreira como aprendiz nas obras da Doca da Alfândega no Rio de Janeiro, tendo sido depois, sucessivamente, engenheiro de obras do Ministério do Império; chefe dos serviços dos telégrafos e eletricidade da Estrada de Ferro D. Pedro II; engenheiro-chefe da Comissão de Açudes no Ceará; diretor de Obras Civis e Hidráulicas do Ministério da Marinha; engenheiro-chefe da Estrada de Ferro Central de Pernambuco; diretor-geral e depois consultor do Ministério da Viação e Obras Públicas; diretor-geral dos Correios e Telégrafos (1895); diretor da Estrada de Ferro Central do Brasil (1906 a 1910); diretor do Lloyd Brasileiro (1910) e inspetor-geral das obras contra a seca no Nordeste (1913). Foi ainda professor da Escola Politécnica do Rio de Janeiro e deputado federal. Esta trajetória profissional contém os principais elementos da época, com alguns elementos típicos da elite profissional: o período de aprendizado com profissionais estrangeiros, o "enciclopedismo", as funções técnicas na burocracia pública e os cargos na alta administração em empresas do Estado, a docência na Politécnica, e, eventualmente, a experiência parlamentar. 52


Mas até 1920 - quando a vulgarização do concreto armado induz a expansão da construção civil - as ferrovias permanecem como o campo por excelência da atividade dos engenheiros; observa um historiador que até esta data "fazer engenharia no Brasil era, praticamente, sinônimo de projetar, construir ou operar estradas de ferro"( Silva Telles, 1984: 310). Certamente, é a especialidade que predomina no serviço público, pelo menos até 1936; segundo um estudo sobre engenheiros na burocracia estatal (Mattos Dias, 1991: 58-59), neste ano 80% dos profissionais empregados pelo Estado estavam lotados no Ministério de Viação e Obras Públicas, dos quais aproximadamente 40% eram engenheiros ligados às ferrovias (principalmente à EFCB) e mais 35% a estradas de rodagem e infra-estrutura portuária (Inspetoria Federal de Estradas e Departamento Nacional de Portos e Navegação). 52


A expansão da construção civil a partir de 1920 abria um novo mercado potencial de trabalho. Proliferam as companhias construtoras, e alguns engenheiros, ao se tornarem proprietários ou sócios de  empreendimentos bem-sucedidos - mas não apenas no setor da construção civil -, estabelecem urna ponte com a classe empresarial; o caso (alvez clássico é o de Roberto Simonsen com a Companhia Construtora de Santos (criada em 1912) e a Cia. Santista de Habitações Econômicas, e sua íntima associação com a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo-FIESP, criada em 1928. A incipiente indústria nacional, formada de pequenas empresas familiares, resumia-se ao setor de bens de consumo corrente - têxtil, vestuário, calçados, alimentos e bebidas - e não constituía mercado significativo para o engenheiro. 52-53


2 - A ascensão da engenharia


Compreensivelmente, o Estado permaneceria como o grande empregador do contingente de engenheiros nacionais durante o período que marca o início da industrialização do país. Com a crise mundial de 29 e a queda dos preços internacionais do café, a ideia da industrialização corno alternativa para o desenvolvimento econômico ganha lugar de destaque, inexistindo o grande capital nacional privado para instalação das indústrias de base, o Estado interviria diretamente no processo produtivo. O ciclo se inicia com um grande esforço de regulação e de planejamento centralizado da economia. Datam desta época os códigos · de Águas, de Minas e o Florestal, todos de 1934; o Conselho Federal de

Comércio Exterior (1934), o Conselho Técnico de Economia e Finanças (1937), o Conselho de Minas e Metalurgia (1937), o Conselho Nacional de Petróleo (1938), entre outros; o Plano de Obras Públicas e Aparelhamento de Defesa (1939), o Plano Geral de Viação Nacional (1934), o Plano Siderúrgico Nacional e, nos anos quarenta, um conjunto de empresas públicas nos setores estratégicos da economia: a Cia. Siderúrgica Nacional (1941), a Cia. Nacional de Alcalis (1943), a Usina Siderúrgica de Volta Redonda (1943), a Cia. Vale do Rio Doce (1942), a Chesf (1945). 53


Em todos estes setores observa-se a ascensão do engenheiro à arena das decisões públicas, pela simples razão de que era necessário aumentar o coeficiente técnico das decisões em áreas tecnologicamente novas e no bojo de um amplo e primeiro esforço de planejamento econômico a nível nacional, não existindo outras categorias profissionais que pudessem viabilizá-las. Corno consultor e formulador de políticas nos conselhos e comissões, corno técnico nos diversos planos ou corno gerente e executor das obras viárias, de siderurgia ou de hidroelétricas, o engenheiro desdobrava-se por inúmeras funções; corno observa Mattos Dias (1991) "para tratar de aspectos que iam da contratação de financiamentos externos, passavam pela compra de equipamentos ou pelo controle da execução dos contratos de assistência técnica, até chegar à organização da produção em usinas, refinarias, canteiros de obras, somente existia um profissional realmente capacitado, o engenheiro" (p. 87). A face privada deste processo é o surgimento das grandes empreiteiras associadas aos empreendimentos estatais, ao qual poder-se-ia acrescentar o impulso que o surto de urbanização neste período empresta à construção civil. 53-54


A partir da década de 50 ocorreu no país uma transformação quantitativa e qualitativa no parque industrial. O capital estrangeiro penetra em grande escala na economia, sobretudo nos setores da indústria mecânica e pesada, frequentemente associado ao capital nacional. A indústria automobilística se consolida, expande-se a de autopeças e acessórios, outras se implantam em setores industriais novos (eletrodomésticos, por exemplo); num mercado mais aberto e competitivo, mesmo os setores tradicionais modernizam-se tanto em relação à tecnologia de produção quanto em relação às técnicas administrativas e gerenciais. Em medida considerável o eixo da atuação dos engenheiros desloca-se para o setor industrial privado onde passa a ocupar posições gerenciais nos altos escalões das empresas e a exercer funções que englobam especializações diferenciadas, especialmente as econômico-financeiras e as administrativas. 54


Mas já neste período o engenheiro começa a experimentar a concorrência de outros profissionais, tanto no setor público quanto no privado. No ponto máximo de expansão de sua "jurisdição" profissional a engenharia vê um segmento deste espaço sendo contestado e disputado por novas profissões, em particular pela economia. 54


A constituição da economia


De certa forma o engenheiro é, também, o primeiro "economista" e o primeiro "gerente" pela própria natureza de sua atividade. Como vimos anteriormente, a competência técnica do engenheiro não vinha do início da aplicação direta das ciências naturais, sobretudo da física, aos problemas de engenharia, mas da complexidade e escala dos projetos dos quais participava, seja como aprendiz, seja como profissional já capacitado. Em sua relação com a prática profissional, o conteúdo efetivo da educação dos primeiros engenheiros brasileiros era, em larga medida, irrelevante. 54


Mas, no contexto de projetos de larga escala - e numa economia capitalista -, a função do engenheiro é ao mesmo tempo técnica e econômica. Como observa Larson (1979: 27), os custos são um critério inerente na avaliação da "adequação da solução técnica" e a expectativa é de que os engenheiros orientem o empresário ou contratante quanto à viabilidade econômica e rentabilidade dos projetos. 54 


Este componente econômico que faz do engenheiro um "economista" está presente nas discussões dos primeiros engenheiros brasileiros sobre as vantagens econômicas relativas da bitola larga ou estreita; problemas análogos sobre a forma de financiamento da construção das ferrovias ou sobre as tarifas de transporte constituíam aspectos inerentes à função do engenheiro nesta época. Em 1944, são dois engenheiros, Eugênio Gudin e Roberto Simonsen, que mobilizam a opinião pública numa acirrada polêmica em torno da controvertida questão da intervenção do Estado na economia. 54


Caracteristicamente, Gudin era nessa época relator da Comissão de Planejamento Econômico, e Simonsen, do Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial, ambos, órgãos consultivos da Presidência da República. Vale este destaque porque era no âmbito das agências consultivas e de planejamento do Estado que se formavam os "economistas práticos", antes que as escolas de economia pudessem formar suas primeiras turmas de graduados (Loureiro,1992; Motta,1992). Como estas agências tinham composição profissional heterogênea, engenheiros, advogados, diplomatas e altos funcionários públicos "diplomavam-se" no trato direto com as questões econômicas, quando não eram enviados ao exterior para estágios em agências internacionais ou para cursos de especialização. Serão também eles os professores das primeiras faculdades de economia que se fundaram no país. 54


Vicissitudes do 'fechamento"


Determinava a Lei 3.001, de outubro de 1880, que "engenheiros civis, geógrafos, agrimensores e bacharéis formados em matemática, nacionais e estrangeiros, não poderão tomar posse de empregos ou comissões do Governo sem apresentar seus títulos e cartas de habilitação"; em julho do ano seguinte, entretanto, o Decreto 8.159 abria uma exceção para os engenheiros ingleses, para os quais bastaria a apresentação de diploma de sócio efetivo do Instituto de Engenheiros Civis de Londres, desde que na Inglaterra não havia escola de engenharia para conferir diplomas profissionais (Silva Telles, 1984: 470). 58


Esta passagem é bastante ilustrativa das vicissitudes por que passava na época - e haveria de passar ainda por longo tempo - o projeto profissional dos engenheiros nacionais. Dentre os fatores diversos vale a pena citar o caráter liberal das primeiras constituições no tocante ao exercício das profissões, e a completa dependência tecnológica da engenharia brasileira. De um lado, o Estado não tinha como regular o exercício profissional no âmbito privado, cuja liberdade a Constituição garantia; mesmo se pudesse fazê-lo, não disporia dos mecanismos de fiscalização, precários até mesmo na própria esfera pública. 58



A Lei 3.001 anteriormente mencionada não satisfez os engenheiros brasileiros, principalmente porque regulava, pela exigência de títulos e credenciais, o exercício profissional apenas no âmbito da burocracia pública. Havia no setor privado um amplo campo de atividades, o da construção e reconstrução de casas, que permanecia virtualmente dominado por mestres-de-obras, segundo tradição que vinha da época colonial à qual se acrescentou, particularmente em São Paulo, a contribuição dos imigrantes italianos (os capomastri), que construíam bairros inteiros; mestres-de-obras estes que, "sem peias nem sujeição a provas ou exames, sobre causarem grandes prejuízos a particulares a quem lesam, muitas vezes com os erros devidos à sua ignorância, prejudicam o público e entorpecem o embelezamento da cidade", como a eles se referiu em 1857, em ofício à Câmara Municipal, o engenheiro-diretor de Obras Públicas da Corte (Silva Telles, 1984:104). 58


Provavelmente são os mestres-de-obras o alvo do ofício enviado em 1888 pelo Instituto Politécnico Brasileiro ao ministro da Agricultura, Comércio e Obras Públicas com reparos à Lei 3.001. Em primeiro lugar o ofício observava que parecia justo exigir para a prática da engenharia os mesmos requisitos que se aplicavam à da advocacia ou à da medicina nas cidades importantes do Império, ou seja, graduação em alguma faculdade ou escola superior e a necessária habilitação; assim, só indivíduos habilitados deveriam exercer a engenharia. 59


O ofício do Instituto Politécnico não vingou pelas mesmas razões já mencionadas. As construções mais simples continuaram a ser feitas pelos mesmos padrões dos tempos coloniais - estruturas de alvenaria de pedra, ligadas com argamassa de cal ou de taipa, exigindo apenas um conhecimento prático que os mestres-de-obra dominavam  magistralmente. As inovações técnicas ou arquitetônicas dependiam dos estrangeiros que traziam também materiais novos: tijolo, vigas e colunas de ferro para a construção de pisos e varandas e praticamente todo o material de instalações hidráulicas e sanitárias. 59


Havia, por outro lado, um relativo desinteresse das associações então existentes pelas questões relativas à regulamentação profissional. A manifestação acima referida do Instituto Politécnico constitui uma rara exceção no contexto de suas preocupações normais. O Instituto, fundado em 1862, teve como presidente até 1889 o Conde d'Eu e era um centro de estudos e debates técnicos e científicos muito ao estilo do próprio ensino ministrado na Escola Central em cujas instalações se reunia. Quanto ao Clube de Engenharia, fundado no Rio de Janeiro em 1880, constituía-se também num fórum de debates técnicos, combinando a função de agremiação social de engenheiros e industriais; foi frequentemente presidido por personagens destacados no governo. Resumidamente: um e outro eram centros de confluência da elite profissional, o que pode não significar muito numa época em que o número total de engenheiros era relativamente pequeno. 59


De qualquer forma, mercado de trabalho e regulamentação do exercício profissional não eram propriamente preocupações desta elite bem situada econômica e socialmente. 59-60


Elite e massa: constituição do saber e mercado de trabalho


Na história da maioria das profissões, preocupações com mercado de trabalho ou regulamentação profissional surgem com intensidade apenas quando há uma massa de profissionais para a qual os diplomas não constituem garantia nem de emprego nem de prestígio, e que procura romper o monopólio da elite com relação ao acesso aos melhores empregos e aos privilégios. 60


Este está · o foi relativamente tardio na longa história da profissionalização da engenharia; de fato, o primeiro sindicato profissional, o Sindicato Nacional dos Engenheiros, só foi criado em 1931 no Rio de Janeiro à sombra do Clube de Engenharia, que o ajudava financeiramente e cedia-lhe uma sala. O que fazia o Sindicato? A crer em depoimentos coletados por Simões (1989: 90-91) entre antigos militantes, não havia muito o que fazer, já que grande parte dos associados não era constituída de assalariados, mas de engenheiros autônomos e empregados no setor público, o que contribuía para esvaziar a questão do mercado de trabalho. 60


Credencia/ismo e 'fechamento": a intervenção do Estado



Algumas formas atenuadas de credencialismo profissional sempre existiram no Brasil. Basta recordar as leis e decretos, alguns estaduais, dispondo sobre a exigência de diploma para preenchimento de cargos públicos por engenheiros, ou a preferência de que gozavam os contadores egressos dos Cursos Superiores de Administração e Finanças para acesso às funções públicas. Entretanto, nem sempre a legislação era eficiente; em primeiro lugar, as necessidades da administração pública, sobretudo nas províncias e depois nos estados, levava o governo a contratar pessoal sem qualquer qualificação formal; em segundo lugar, não existiam mecanismos de fiscalização eficaz da aplicação das leis.61


As constituições liberais do Império e da República Velha, consagrando a liberdade do exercício profissional, constituíam fortes limitações à atividade reguladora do Estado neste particular. Por outro lado, existiam os fatores estruturais que pudessem estimular o Estado a regulamentar as atividades profissionais, ampliando ou concedendo monopólios no mercado de trabalho. À engenharia, por exemplo, faltavam as condições tanto para excluir os "práticos" estrangeiros do mercado, quanto para estabelecer a superioridade dos seus "serviços" sobre os dos mestres-de-obra. Os títulos formais aos engenheiros nacionais eram mais uma marca de distinção social do que de aptidão profissional, e de qualquer maneira era mais importante controlar a qualidade do "produto" do que a qualidade do "produtor". 61


A situação só se alteraria na primeira metade do presente século, quando a sistematização metódica do conhecimento empírico permitiu eliminar a "aprendizagem", e mais tarde, quando o surgimento das primeiras universidades criou as condições para aquisição de uma base teórica. Nesta época o projeto profissional dos engenheiros encontrou acolhida por parte do Estado Novo, um Estado centralizador e autoritário inclinado à regulação da atividade profissional como um componente da reorganização da sociedade, e disposto a moldá-la à sua própria imagem.61-62


A regulamentação da profissão de engenheiro foi objeto do Decreto 23.569 de 11 de dezembro de 1933 (dia do engenheiro) que incluía nas mesmas disposições legais as profissões de arquiteto e de agrimensor. A condição geral estipulada para o exercício profissional era a posse de diploma outorgado por escola de ensino superior, oficial ou equiparada (art. 1º a). Todos os diplomas deveriam ser registrados no Ministério da Educação e Saúde (art. 10), e os obtidos no exterior deveriam ser revalidados (art. 10). O monopólio profissional era reafirmado para os cargos públicos (art. 9°) e estendido para o setor privado: empresas que operassem nos setores de engenharia, da arquitetura ou da agrimensura deveriam comprovar a habilitação profissional dos seus engenheiros (art. 8°). Documentos técnicos (laudos, projetos, plantas etc.) só teriam valor jurídico ou oficial quando elaborados por engenheiros registrados, e as obras só por eles poderiam ser executadas (art. Sº); trabalhos gráficos, especificações, orçamentos ou pareceres relativos a trabalhos de engenharia, arquitetura ou agrimensura deveriam conter menção explícita ao título do profissional que os assinasse (art. 6°). Os direitos adquiridos dos profissionais não diplomados- os "licenciados" - eram garantidos, desde que comprovassem com as respectivas licenças o exercício das funções (art. 3º). 62


O controle e fiscalização das condições estipuladas pelo decreto eram da competência de um Conselho Federal de Engenharia e Arquitetura, ao qual estavam subordinados Conselhos Regionais, todos eles com atribuições bastante amplas, dentre as quais as de cassar os registros profissionais, aplicar as penalidades previstas no decreto e a fiscalização do exercício profissional (Cap. III). No Cap. IV eram definidas as atribuições profissionais ou o campo de competência das várias especializações da engenharia. Indiretamente o decreto introduzia um elemento de competição "jurisdicional" dentro da profissão, cabendo aos Conselhos Regionais "dirimir quaisquer dúvidas suscitadas acerca das especializações, com recurso suspensivo ao Conselho Federal" (art. 47). 62


Ao longo do tempo, ambas as leis de regulamentação profissional seriam alteradas, mas sempre no sentido de definir novas áreas de atuação profissional exclusiva e de controlar o mercado de trabalho· isto se fazia através da competência dos Conselhos Federais de "suprir as lacunas" das leis originais, e de legislar através de Resoluções. Em particular, a cada novo curso especializado surgido nas universidades o CONFEA definia uma nova especialização em engenharia com sua respectiva área de competência exclusiva. 63


O Conselho esteve também atento à velha questão da concorrência de profissionais estrangeiros: a autorização do CONFEA para sua contratação, no setor público e no privado, ficava condicionada à constatação de escassez de profissionais brasileiros da mesma especialidade, era concedida pelo prazo máximo de dois anos: prorrogável pelo mesmo período, e ficava sujeita a comprovação "pelas entidades interessadas, de que manterão, junto a cada profissional estrangeiro especializado, um assistente  brasileiro do respectivo ramo profissional. 63


Esta ampla liberdade para procederem à regulação profissional advém do fato de que a autoridade dos Conselhos é a autoridade do Estado. Os Conselhos - federais e regionais - são entes estatais; como autarquias dotadas de personalidade jurídica de direito público, constituem serviço público federal, e como tal estão submetidas legalmente à fiscalização e controle do Estado. Nem mesmo os códigos de ética profissional têm validade fora deste quadro legal: devem ser aprovados pelos Conselhos "no uso das atribuições legais e regulamentares" conferidas pela lei federal. 64

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