Um livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive. (Padre Antônio Vieira)

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

ARENDT, Hannah. A condição humana.

ARENDT, Hannah. A condição humana. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.

   

 ninguém na história da humanidade jamais havia concebido  a terra como prisão para o corpo dos homens, nem demonstrado tanto desejo de ir, literalmente, daqui à Lua. [...] A Terra é a própria quintessência da condição humana [...] Recentemente a ciência vem se esforçando para tornar "artificial" a própria vida, por cortar o último laço que faz do próprio homem um filho da natureza. 10


Se realmente for comprovado esse divórcio definitivo entre o conhecimento (no sentido moderno de know how) e o pensamento, então passaremos, sem dúvida, à condição de escravos indefesos, não tanto de nossas máquinas quanto de nosso know-how, criaturas desprovidas de raciocínio, à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível, por mais mortífera que seja. 11


O motivo pelo qual talvez seja prudente duvidar do julgamento político de cientistas enquanto cientistas não é, em primeiro lugar, a sua falta de "caráter" [...] nem a sua ingenuidade [...] mas precisamente o fato de que habitam um mundo no qual as palavras perderam seu poder. E tudo o que os homens fazem, sabem ou experimentam só tem sentido na medida em que pode ser discutido [...] os homens que vivem e se movem e agem neste mundo, só podem experimentar o significado das coisas por poderem falar e ser inteligíveis entre si e consigo mesmos. 12


Por outro lado, a finalidade da análise histórica é pesquisar as origens da alienação no mundo moderno, o seu duplo vôo da Terra para o universo e do mundo para dentro do homem, a fim de que possamos chegar a uma compreensão da natureza da sociedade, tal como esta evoluíra e se apresentava no instante em que foi suplantada pelo advento de uma era nova e desconhecida. 14


Neste sentido de inciativa, todas as atividades humanas possuem um elemento de ação e, portanto, de natalidade, e não a mortalidade, pode constituir a categoria central do pensamento político, em contraposição ao pensamento metafísico. 17


A condição humana compreende algo mais que as condições nas quais a vida foi dada ao homem. Os homens são seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles entram em contato torna-se imediatamente uma condição de sua existência. O mundo no qual transcorre a vita activa consiste em coisas produzidas pelas atividades humanas; mas, constantemente, as coisas que devem sua existência exclusivamente aos homens também condicionam os seus autores humanos. Além das condições nas quais a vida é dada ao homem na Terra e, até certo ponto, a partir delas, os homens constantemente criam as suas próprias condições que, a despeito da sua variabilidade e sua origem humana, possuem a mesma força condicionante das coisas naturais. O que quer que toque a vida humana ou entre em duradoura relação com ela, assume imediatamente o caráter de condição da existência humana. É por isso que os homens, independentemente do que façam, são sempre seres condicionados. Tudo o que espontaneamente adentra o mundo humano, ou para ele é trazido pelo esforço humano, torna-se parte da condição humana. O impacto da realidade do mundo sobre a existência humana é sentido e recebido como força condicionante. A objetividade do mundo – o seu caráter de coisa ou objeto -  e a condição humana complementam-se uma à outra; ao ser uma existência condicionada, a existência humana seria impossível sem as coisas, e estas seria um amontoado de artigos incoerentes, um não-mundo, se esses artigos não fossem condicionantes da experiência humana. 17


O que hoje chamamos de privado é um circulo de intimidade cujos primórdios podemos encontrar nos últimos períodos da civilização romana, embora dificilmente em qualquer período da antiguidade grega, mas cujas peculiaridades multiformidade e variedade eram certamente desconhecidas de qualquer período anterior à era moderna. 48


Na opinião dos antigos, o caráter privativo da privacidade, implícito na própria palavra, era sumamente importante: significava literalmente um estado no qual o indivíduo se privava de alguma coisa, até mesmo das mais altas e mais humanas capacidades do homem. Quem quer que vivesse unicamente uma vida privada [...] não era inteiramente humano. Hoje não nos ocorre , de pronto, esse aspecto de privação quando empregamos a palavra "privacidade"; e isto em parte, se deve ao enorme enriquecimento da esfera privada através do moderno individualismo. 48


A mais clara indicação de que a sociedade constitui a organização pública do próprio processo vital talvez seja encontrada no fato de que, em tempo relativamente curto, a nova esfera social transformou todas as comunidades modernas em sociedades de operários e de assalariados; em outras palavras, essas comunidades concentraram-se imediatamente em torno da única atividade necessária para manter a vida – o labor. 56


A admiração pública é também algo a ser usado e consumido; e o status [...] satisfaz uma necessidade como o alimento satisfaz satisfaz a outra: a admiração pública é consumida pela vaidade individual da mesma forma como o alimento é consumido pela fome. 66


A admiração pública é consumida diariamente em doses cada vez maiores, é, ao contrário, tão fútil que a recompensa monetária, uma das coisas mais fúteis que existem, pode tornar-se mais "objetiva" e mais real. 66

  

É em relação a esta múltipla importância da esfera pública que o termo "privado", em sua acepção original de "privação", tem significado. Para o indivíduo, viver uma vida inteiramente privada significa, acima de tudo, ser destituído de coisas essenciais a vida verdadeiramente humana: ser privado da realidade que advém do fato de ser visto e ouvido por outros, privado de uma relação "objetiva" com eles decorrente do fato de ligar-se e separar-se deles mediante um mundo comum de coisas, e privado da possibilidade de realizar algo mais permanente que a própria vida. A privação da privatividade reside na ausência de outros; para estes; o homem privado não se dá a conhecer, e portanto é como se não existisse. O que quer que ele faça permanece sem importância ou consequência para os outros, e o que tem importância para ele é desprovido de interesse para os outros. 68


Quando se permitiu que essa riqueza comum, resultado de atividades anteriormente relegadas à privatividade do lar, conquistasse a esfera pública, as posses privadas – essencialmente muito menos permanentes e muito mais vulneráveis à mortalidade de seus proprietários que o mundo comum, que sempre resulta do passado e se destina a continuar a existir para as gerações futuras – passaram a minar a durabilidade do mundo. É verdade que a riqueza pode ser acumulada a tal ponto que nenhuma vida individual será capaz de consumi-la, de sorte que a família, e não o indivíduo, vem a ser sua proprietária. No entanto, a riqueza não deixa de ser algo destinado ao uso e ao consumo, não importa quantas vidas individuais ela possa suprir. [...] sem o processo de acumulação, a riqueza recairia imediatamente no processo oposto de desintegração através do uso e do consumo. 79


Uma existência vivida inteiramente em público, na presença de outros, torna-se [...] superficial. Retém a sua visibilidade, mas perde a qualidade resultante de vir a tona a partir de um terreno mais sombrio [...] que deve permanecer oculto a fim de não perder sua profundidade num sentido muito real e não subjetivo. 81


Só a bondade deve esconder-se de modo absoluto e evitar qualquer publicidade, pois do contrário é destruída. 86


Estar em solidão significa estar consigo mesmo; e, portanto, o ato de pensar, embora possa ser a mais solitária das atividades, nunca é realizado inteiramente sem um parceiro e sem companhia. 86


O amante da bondade, porém, jamais pode permitir-se viver uma vida solitária; e, no entanto, a vida que ele passa na companhia dos outros e por amor aos outros deve permanecer essencialmente sem testemunhas; falta-lhe, acima de tudo, a companhia de si próprio. Não é um homem solitário, mas isolado; embora conviva com outros, deve ocultar-se deles e não pode ao menos permitir-se a si mesmo ver o que está fazendo. O filósofo sempre pode contar com a companhia dos pensamentos, ao passo que as obras não podem ser companhia para ninguém: devem ser esquecidas a partir do instante em que são praticadas, porque até mesmo a memória delas destrói sua qualidade de "bondade". Além disso, o ato de pensar, por poder ser lembrado, pode cristalizar-se em pensamentos; e os pensamentos, como todas as coisas que devem sua existência à memória, podem ser transformados em objetos tangíveis que, como a página escrita ou o livro impresso, se tornam parte do artifício humano. 86


As boas obras, por deverem ser imediatamente esquecidas, jamais podem tornar-se parte do mundo; vêm e vão sem deixar vestígios; e positivamente não pertencem a este mundo. 86-87


 É este caráter extramundano das boas obras que faz do amante da bondade uma figura essencialmente religiosa e torna a bondade, como a sabedoria na antiguidade, uma qualidade essencialmente inumana e sobre-humana. [...] requer a companhia de Deus, a única testemunha admissível das boas obras, para que não venha a aniquilar inteiramente a existência humana. 87


Como modo sistemático de vida, portanto, a bondade não é apenas impossível nos confins da esfera pública: pode até mesmo destruí-la. 87


qualquer método pelo qual "um homem possa realmente conquistar o poder, mas não a glória", é mau. A maldade que deixa o seu esconderijo é impudente e destrói diretamente o mundo comum; a bondade que sai do seu esconderijo e assume papel público deixa de ser boa: torna-se corrupta em seus próprios termos e levará essa corrupção para onde quer que vá. 88


o labor de nosso corpo e o trabalho de nossas mãos. 90


A distinção que proponho entre labor e trabalho é inusitada [...] quase nada existe para corroborá-la na tradição pré-moderna do pensamento político ou no vasto corpo das teorias do trabalho. Contra essa carência de provas históricas, porém, há uma testemunha muito eloquente e obstinada: a simples circunstância de que todas a línguas européias, antigas e modernas, possuem duas palavras de etimologia diferente para designar o que para nós, hoje, é a mesma atividade, e conservam ambas a despeito do fato de serem repetidamente usadas como sinônimas. 90


O motivo pelo qual essa distinção permaneceu ignorada e sua importância nunca foi examinada nos tempos antigos [...] O desprezo pelo labor, originalmente resultante da acirrada luta do homem contra a necessidade e de uma impaciência não menos forte em relação a todo esforço que não deixasse qualquer vestígio, qualquer monumento, qualquer grande obra digna de ser lembrada, generalizou-se à medida em que as exigências da vida na polis consumiam cada vez mais o tempo dos cidadãos e com a ênfase em sua abstenção de qualquer atividade que não fosse política, até estender-se a tudo quanto exigisse esforço. 91


repousam na convicção de que o labor do nosso corpo exigido pelas necessidades deste último, é servil. Consequentemente, as ocupações que não consistiam em labor, mas ainda assim eram exercidas com a finalidade de atender as necessidades da vida, foram assimiladas a condição de labor.93-94


A opinião de que o labor e o trabalho eram ambos vistos com desdém pela antiguidade pelo fato de que somente escravos os exerciam é um preconceito dos historiadores modernos: os antigos raciocinavam de outra forma: achavam necessário ter escravos em virtude da natureza servil de todas as ocupações que servissem às necessidades de manutenção da vida. [...] Laborar significava ser escravizado pela necessidade, escravidão esta inerente às condições da vida humana. Pelo fato de serem sujeitos às necessidades da vida, os homens só podiam conquistar a liberdade subjugando outros que eles, à força, submetiam à necessidade. 94


Ao contrário do que ocorreu nos tempos modernos, a instituição da escravidão na antiguidade não foi uma forma de obter mão de obra barata nem instrumento de exploração para fins de lucro, mas sim a tentativa de excluir o labor das condições da vida humana. Tudo o que os homens tinham em comum com as outras formas de vida animal era considerado inumano. 95


À primeira vista, porém, é surpreendente que a era moderna – tendo invertido todas as tradições [...] glorificado o trabalho (labor) como fonte de todos os valores, e tendo promovido o animal laborans à posição tradicionalmente ocupada pelo animal rationale – não tenha produzido uma única teoria que distinguisse claramente o animal laborans e o animal faber. Ao invés disso encontramos primeiro a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo; um pouco mais tarde, a diferenciação entre trabalho qualificado e não-qualificado; e, finalmente, sobrepondo-se a ambas por ser aparentemente de importância mais fundamental, a divisão de todas as atividades entre trabalho manual e intelectual. [...] somente  a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo vai ao fundo da questão; e não foi por acaso que os dois grandes teoristas do assunto [...] basearam nela toda a estrutura de seu argumento. 96


 tanto Smith quanto Marx estavam de acordo com a moderna opinião pública quando menosprezavam o trabalho improdutivo, que para eles era parasítico, uma espécie de perversão do trabalho, como se fosse indigno deste nome toda atividade que não enriquecesse o mundo. 97


a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo contém, embora eivada de preconceito, a distinção mais fundamental entre trabalho e labor. Realmente é típico de todo labor nada deixar atrás de si: o resultado do seu esforço é consumido quase tão depressa quanto o esforço é desprendido. 98


possui realmente uma produtividade própria, por mais fúteis ou pouco duráveis que sejam os seus produtos. Essa produtividade não reside em qualquer um dos produtos do labor, mas na força humana, cuja intensidade não se esgota depois que ela produz os meios de sua subsistência e sobrevivência, mas é capaz de produzir um "excedente". [...] a produtividade do labor só ocasionalmente produz objetos; sua preocupação fundamental são os meios da própria reprodução; e, como a sua força não se extingue quando a própria reprodução já está assegurada, pode ser utilizada para a reprodução de mais um processo vital, mas nunca "produz" outra coisa que não "vida". [...] o labor de alguns é bastante para a vida de todos. 99


[...] o que é comprado e vendido no mercado de trabalho não é a qualificação individual, mas a "força de trabalho" (labor), da qual todo ser humano deve possuir aproximadamente a mesma quantidade. [...] A distinção entre trabalho e labor foi abandonada em favor do labor. 101



Bem diferente é o caso da categoria, mais popular, de trabalho manual e intelectual. Aqui, a conexão subjacente entre o homem que trabalha com a mão e o que trabalha com a cabeça é, mais uma vez, o processo de labor – no último caso, realizado pela cabeça, e no primeiro, por outra parte do corpo. Contudo, o processo de pensar, que se presume seja a atividade da cabeça, é ainda menos "produtivo" que o labor, embora de certa forma se assemelhe a este último, uma vez que o labor é também um processo que provavelmente cessa com a própria vida. Se o labor não deixa atrás de si vestígio permanente, o processo de pensar não deixa coisa alguma tangível. 101


Por si mesmo, o processo de pensar jamais se materializa em objetos. Sempre que o trabalhador intelectual deseja manifestar seus pensamentos tem que usar as mãos como qualquer outro trabalhador. Em outras palavras, o processo de pensar e o processo de trabalhar são duas atividades diferentes que nunca chegam a coincidir: o pensador que deseja dar a conhecer ao mundo o "conteúdo" dos seus pensamentos deve, antes de mais nada, parar de pensar e rememorar os pensamentos [...] a lembrança prepara o intangivel e fútil para sua materialização final. 101-102


O desprezo pelo labor na teoria antiga e sua glorificação na teoria moderna baseavam-se ambos na atitude subjetiva ou na atividade do trabalhador, uma desconfiando de seu doloroso esforço e a outra louvando-lhe a produtividade. P. 104-105


 Vistos, porém, em sua qualidade mundana, a ação, o discurso e o pensamento têm muito mais em comum entre si que qualquer um deles tem com o trabalho ou o labor. Em si, não "produzem" nem geram coisa nenhuma: são tão fúteis quanto a própria vida. Para que se tornem coisas mundanas [...] devem primeiro ser vistos, ouvidos e lembrados, e em seguida transformados, "coisificados" [...] Todo o mundo fatual dos negócios humanos depende, para sua realidade e existência contínua, em primeiro lugar da presença de outros que tenham visto e ouvido e que lembrarão; e em segundo lugar, da transformação do intangível na tangibilidade das coisas. Sem a lembrança e a reificação [...] as atividades vivas da ação, do discurso e do pensamento perderiam sua realidade ao fim de cada processo e desapareceriam como se nunca houvessem existido. A materialização que eles devem sofrer para que permaneçam no mundo ocorre ao preço de que sempre a "letra morta" substitui algo que nasceu do "espírito vivo", e que realmente, durante um momento fugaz, existiu como espírito vivo. 107


A realidade e a confiabilidade do mundo humano repousam basicamente no fato de que estamos rodeados de coisas mais permanentes que a atividade pela qual foram produzidos, e potencialmente ainda mais permanentes que a vida de seus autores. A vida humana, na medida que é a criadora do mundo, está empenhada em constante processo de reificação; e o grau de mundanidade das coisas produzidas, cuja soma total constitui o artifício humano, depende de sua maior ou  menor permanência neste mundo. 107


 Das coisas tangíveis, as menos duráveis são àquelas necessárias ao próprio processo da vida. 107


são as coisas menos mundanas e ao mesmo tempo as mais naturais. Emboras feitas pelo homem, vêm e vão, são produzidas e consumidas de acordo com o eterno movimento cíclico da natureza 108


Ao contrário do processo de trabalhar, que termina quando o objeto está acabado [...] o processo do labor move-se sempre no mesmo círculo prescrito pelo processo biológico do organismo vivo, e o fim das fadigas e penas só advém com a morte desse organismo. P. 109


os produtos deveriam permanecer por um tempo suficientemente longo no mundo das coisas tangíveis para que adquirissem "valor". 116


a revolução segundo Marx, não se destinava a emancipar as classes trabalhadoras, mas a emancipar o homem do trabalho, somente quando o trabalho é abolido, pode o reino da liberdade suplantar o reino da necessidade. 116

 

 De todas as atividades humanas somente o labor, e não a ação nem o trabalho, é interminável, visto como acompanha automaticamente a própria vida, indiferente a decisões voluntárias ou finalidades humanamente importantes. P. 117-118.


A "benção ou alegria do labor"  é o modo humano de sentir a pura satisfação de se estar vivo que temos em comum com todas as criaturas viventes [...] labutando e repousando, laborando e consumindo, com a mesma regularidade feliz e intencional com que o dia segue a noite e a morte segue a vida. 118-119


A benção do labor consiste no fato de que o esforço e a recompensa seguem-se tão de perto quanto a produção e o consumo dos meios de subsistência, de modo que a felicidade é concomitante com o próprio processo, da mesma forma como o prazer é concomitante com o funcionamento de um corpo sadio. P. 120

 

Como o processo natural da vida reside no corpo, nenhuma outra atividade é tão imediatamente vinculada à vida quanto o labor. p. 122.

 

Normalmente, a ausência de dor é apenas a condição física necessária ara que o indivíduo sinta o mundo; somente quando o corpo não está irritado [...] voltado para dentro de si mesmo, podem os sentidos do corpo funcionar normalmente e receber o que lhes é oferecido. A ausência de dor geralmente só é "sentida" no breve intervalo entre a dor e a não dor. 125


A única atividade que corresponde estritamente à experiência de completa ausência do mundo [...] é o labor, no qual o corpo humano, embora em atividade, também se volta para dentro de si mesmo, concentra-se apenas no fato de estar vivo, e permanece preso ao seu metabolismo com a natureza sem jamais transcender ou libertar-se do ciclo representativo do seu próprio funcionamento. P. 127

 

dentro da estrutura das experiências ao alcance da introspecção, não conhecemos outro processo senão o processo vital do nosso corpo, e o labor é a única atividade que lhe corresponde e na qual podemos traduzi-lo. 129


Os produtos do labor, produtos do metabolismo do homem com a natureza, não duram no mundo tempo suficiente para se tornarem parte dele, e a própria atividade do labor, concentrada exclusivamente na vida e em sua manutenção, é tão indiferente ao mundo [...] como se este não existisse. O animal laborans, compelido pelas necessidades do corpo, não usa esse corpo livremente. [...] O animal laborans  não foge do mundo, mas dele é expelido na medida que é prisioneiro da privatividade do próprio corpo, adstrito à satisfação de necessidades das quais ninguém pode compartilhar e que ninguém pode comunicar inteiramente. P. 130-131


As ferramentas e instrumentos que podem suavizar consideravelmente o esforço do labor, não são, eles mesmos, produtos do labor, mas do trabalho; não pertencem ao processo do consumo: são parte integrando do mundo de objetos de uso. 134


O processo de fabricar uma coisa é limitado, e a função do instrumento atinge um fim previsível e controlado no produto acabado; o processo vital que exige o labor é uma atividade interminável, e o único instrumento à sua altura seria um perpetuum mobile [...] tão vivo e ativo quanto o organismo a que serve. P. 135


Em nossa necessidade de substituir cada vez mais depressa as coisas mundanas que nos rodeiam; já não podemos nos dar ao luxo de usá-las, de respeitar e preservar sua inerente durabilidade; temos de consumir, devorar [...] nossas casas, nossos móveis, nossos carros, como se eles fossem as "coisas boas" da natureza que se deteriorariam se não fossem logo trazidas para o ciclo infindável  do metabolismo do homem com a natureza. 138


A [...] tendência de reduzir todas as atividades sérias à condição de prover o próprio sustento é evidente em todas as atuais teorias do trabalho, que quase unanimemente definem trabalho como o oposto de lazer. Em consequência, todas as atividades sérias, independentemente dos frutos que produzam, são chamadas de "trabalho", enquanto toda atividade que não seja necessária, nem para a vida do indivíduo nem para o processo vital da sociedade, é classificada como lazer. 139

 

O que já sucedeu uma vez em nossa história, nos séculos do declínio do Império Romano, pode estar acontecendo novamente. Também naquela época o labor tornou-se ocupação das classes livres, somente para levar a estas as obrigações das classes servis. Wallon apud p. 142.

 

O perigo da futura automação não é tanto a tão deplorada mecanização e artificialização da vida natural, quanto o fato de que, a despeito de sua artificialidade, toda a produtividade humana seria sugada por um processo vital enormemente intensificado e seguiria, sem dor e sem esforço, o seu ciclo natural eternamente repetido.  O ritmo das máquinas aumentaria e intensificaria enormemente o ritmo natural da vida, mas não mudaria – apenas tornaria mais destruidora -  a principal característica da vida em relação ao mundo, que é a de minar a durabilidade. P. 144-145

 

A verdade bastante incômoda de tudo isso é que o triunfo do mundo moderno sobre a necessidade se deve à emancipação do labor [...] ao fato de que o animal laborans pôde ocupar a esfera pública [...] não poderá existir uma esfera verdadeiramente pública, mas apenas atividades privadas exibidas em público. O resultado é aquilo que eufemisticamente se chama de cultura de massas. P. 146

 

Quanto mais fácil se tornar a vida numa sociedade de consumidores [...] mais difícil será preservar a consciência das exigências da necessidade que a impele, mesmo quando a dor e o esforço – manifestações externas da necessidade – são quase imperceptíveis. O perigo é que tal sociedade deslumbrada ante a abundância de sua crescente fertilidade e presa ao suave funcionamento de um processo interminável, já não seria capaz de reconhecer a sua própria futilidade – a futilidade de uma vida que não se fixa nem se realiza em coisa alguma que seja permanente, que continue a existir após terminado o labor. Adam Smith apud p. 147-148.

 

Os mesmos instrumentos que apenas aliviam a carga e mecanizam o labor do animal laborans são projetados e inventados pelo homo faber para a construção de um mundo feito de coisas; a conveniência e a precisão desses instrumentos são ditadas pelos fins objetivos que ele inventa a seu bel prazer, e não por necessidades ou carências subjetivas. [...] O animal laborans, sujeito aos processos devoradores da vida e constantemente ocupado com eles, a durabilidade e a estabilidade do mundo são basicamente representadas pelos instrumentos e ferramentas que utiliza; e, numa sociedade de operários, os instrumentos podem perfeitamente assumir caráter ou função mais que meramente instrumental. P. 157

 

homens que se tornam escravos das máquinas que eles mesmos inventaram e são adaptados as necessidades dessas máquinas, ao invés de usá-las como instrumentos para a satisfação das necessidades e carências humanas, têm suas raízes na situação fatual do labor. p. 158

 

se considerarmos em termos de comportamento humano esta perda da faculdade de distinguir claramente entre meios e fins, podemos dizer que a livre disposição e uso de instrumentos para a fabricação de um produto final específico são substituídos pela unificação rítmica do corpo e do seu instrumento, na qual o próprio movimento de "laborar" age como força unificadora. O labor [...] requer, para melhores resultados, uma execução ritmicamente ordenada e, quando muitos operários se reúnem, exige uma coordenação rítmica de todos os movimentos individuais. Neste momento, os instrumentos perdem seu caráter instrumental, e desaparece a clara distinção entre o homem e seus utensílios. O que preside o processo de labor e todos os processos de trabalho executados à maneira do labor não é o esforço intencional do homem nem o produto que ele possa desejar, mas o próprio movimento do processo e o ritmo que este impõe aos operários. Os utensílios do labor aderem a este ritmo até que o corpo e o instrumento possam agitar-se no mesmo movimento repetitivo [...] até que, no uso das máquinas [...] já não é o movimento do corpo que determina o movimento do utensílio, mas sim o movimento da máquina que impõe os movimentos ao corpo. P. 158-159

 

Se a condição humana consiste no fato de que o homem é um ser condicionado, para o qual tudo [...] se torna imediatamente condição para sua existência posterior, então o homem ajustou-se a um ambiente de máquinas desde o instante em que as construiu. [...] Até mesmo a mais sofisticada ferramenta permanece como serva, incapaz de guiar ou substituir a mão; por outro lado, até mesmo a mais primitiva das máquinas guia o labor do nosso corpo até substituí-lo inteiramente. P. 160

 

A discussão de todo problema da tecnologia [...] da transformação da vida e do mundo pela introdução da máquina, vem estranhamente enveredando por uma concentração demasiado exclusiva no serviço ou desserviço que as máquinas prestam ao homem. A premissa é que toda ferramenta e todo utensílio destina-se basicamente a tornar mais fácil a vida do homem e menos doloroso o labor humano. [...] Assim, a questão não é tanto se somos senhores ou escravos de nossas máquinas, mas se estas ainda servem ao mundo e às coisas do mundo ou se, pelo contrário, elas e seus processos automáticos passaram a dominar e até mesmo a destruir o mundo e as coisas. P. 164


em um mundo estritamente utilitário, todos os fins tendem a ser de curta duração e a transformar-se em meios para outros fins. 167


A perplexidade do utilitarismo é que se perde na cadeia interminável de meios e fins sem jamais chegar a algum princípio que possa justificar a categoria de meios e fins [...] a categoria da própria utilidade. O "para que" torna-se o conteúdo do "em nome de quê"; [...] a utilidade, quando promovida a significância, gera a ausência de significado. 167


A única solução do dilema de ausência de significado em toda filosofia estritamente utilitária é afastar-nos do mundo objetivo de coisas de uso e voltar nossa atenção para a subjetividade da própria utilidade. Só em um mundo estritamente antropocêntrico, onde o usuário, isto é, o próprio homem, é o fim último que põe termo à cadeia infindável de meios e fins, pode a utilidade como tal adquirir a dignidade de significação. P. 168

 

E como é a natureza do homem-usuário e fabricante de instrumentos ver em tudo um meio para um fim [...] isto fatalmente significaria fazer do homem não só a medida de todas as coisas cuja existência dele depende, mas de literalmente tudo o que existe. P. 171.


O fato é que o homo faber, construtor do mundo e fabricante de coisas, só consegue relacionar-se devidamente com as pessoas trocando produtos com elas, uma vez que é sempre no isolamento que ele os produz. [...] este isolamento [...] é a condição de vida necessária a todo mestrado, que consiste em estar a sós com a "ideia", a imagem mental da coisa que irá existir. 174


O valor, sendo como é "uma ideia da proporção entre a posse de uma coisa e a posse de outra [....] significa sempre valor de troca [...] é somente no mercado de trocas [...] que todas elas se tornam "valores", quer sejam produtos do labor ou do trabalho, quer sejam objetos de uso ou de consumo. [...] Este valor consiste unicamente na estima da esfera pública na qual as coisas surgem como mercadorias; e o que confere esse valor a um objeto não é o labor nem o trabalho, não é o capital nem o lucro nem o material, mas única e exclusivamente a esfera pública, na qual o objeto surge para ser estimado, exigido ou desdenhado. 177


O pensamento [...] não tem outro fim ou propósito além de si mesmo, e não chega sequer a produzir resultados [...] A atividade de pensar é tão incessante e repetitiva quanto a própria vida. 184


Nem mesmo os objetos de uso são julgados somente segundo as necessidades objetivas  objetivos do mundo onde encontrarão o seu lugar, para durar e para serem vistos e usados. P. 186

 

O mundo de coisas feito pelo homem, o artifício humano construído pelo homo faber, só se torna uma morada para os homens mortais, um lar cuja estabilidade suportará e sobreviverá ao movimento continuamente mutável de suas vidas e ações, na medida em que transcende a mera funcionalidade das coisas produzidas para o consumo e a mera utilidade dos objetos produzidos para o uso. p. 186-187


A vida em seu sentido não biologico, o tempo que transcorre entre o nascimento e a morte do homem, manifesta-se na ação e no discurso, que têm em em comum com a  vida o fato de serem essencialmente fúteis [...] Se o animal laborans precisa do auxílio do homo faber para atenuar seu labor e minorar seu sofrimento [...] os homens que agem e falam precisam da ajuda do homo faber em sua mais alta capacidade [...] a ajuda do artista, de poetas e historiógrafos, de escritores e construtores de monumentos [...] para que venha a ser o que o mundo sempre se destinou a ser – uma morada para os homens durante sua vida na terra – o artifício humano deve ser um lugar adequado à ação e ao discurso,a atividades não só inteiramente inúteis às necessidades da vida, mas de natureza inteiramente diferentes das várias atividades da fabricação mediante a qual são produzidos o mundo e todas as coisas que nelas existem [...] o que é certo é que a medida não precisa ser nem a compulsiva necessidade da vida biológica e do labor, nem o instrumentalismo utilitário da fabricação e do uso. p. 187


a vida sem discurso e sem ação [...] está literalmente morta para o mundo; deixa de ser uma vida humana, uma vez que já não é vivida entre os homens. 189


É com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano; e esta inserção é como um segundo nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato original e singular do nosso aparecimento físico original. Não nos é imposta pela necessidade, como o labor, nem se rege pela utilidade, como o trabalho. Pode ser estimulada, mas nunda condicionada, pela presença de outros em cuja companhia desejamos estar; 189


seu ímpeto decorre do começo que vem ao mundo quando nascemos, e ao qual responderemos começando algo novo por nossa própria iniciativa. Agir, no sentido mais geral do termo, significa tomar iniciativa, iniciar. 189-190


Sem o discurso, a ação deixaria de ser ação, pois não haveria ator; e o ator o agente do ato, só é possível  se for, ao mesmo tempo, o autor das palavras. A ação que ele inicia é humanamente revelada através de palavras [...] o autor se identifica, anuncia o que fez, faz e pretende fazer. 191


Nenhuma outra atividade humana precisa tanto do discurso quanto a ação. p. 192


Na ação e no discurso, os homens mostram quem são, revelam ativamente suas identidades pessoais e singulares, e assim apresentam-se ao mundo humano, enquanto suas identidades físicas são reveladas, sem qualquer atividade própria, na conformação singular do corpo e no som singular da voz. p. 192


existimos basicamente como seres que agem e falam. 194


damos a esta realidade o nome de "teia" de relações humanas. 195


A rigor, a esfera dos negócios humanos consiste na teia de relações humanas que existe onde quer que os homens vivam juntos. A revelação da identidade através do discurso e o estabelecimento de um novo início através da ação incidem sempre sobre uma teia já existente, e nela imprimem suas consequências imediatas. Juntos, iniciam novo processo, que mais tarde emerge como a história singular da vida do recém chegado, que afeta de modo singular a história da vida de todos aqueles com quem ele entra em contato. 196


Embora todos comecem a vida inserindo-se no mundo humano através do discurso e da ação, ninguém é autor ou criador da história de sua própria vida. Em outras palavras, as histórias, resultado da ação e do discurso, revelam uma gente, mas esse agente não é autor nem produtor. Alguém a iniciou e dela é o sujeito, na dupla acepção da palavra, mas ninguém é seu autor. 197


A fabricação é circundada pelo mundo e está em permanente contato com ele, a ação e o discurso são circundados pela teia de atos e palavras de outros homens, e estão em permanente contato com ela [...] A força de que o individuo necessita para qualquer processo de produção, seja intelectual ou puramente física – torna-se inteiramente inútil quando se trata de agir. 201


a força do iniciador e líder reside apenas em sua iniciativa\ e nos riscos  que assume, não na realização em si. 202


Pelo fato de que se movimenta sempre entre e em relação a outros seres atuantes, o ator nunca é simples "agente", mas também, e ao mesmo tempo, paciente. Agir e padecer são como faces opostas da mesma moeda, e a história iniciada por uma ação compõe-se de seus feitos e dos sofrimentos dele decorrentes. Estas consequências são ilimitadas porque a ação, embora possa provir do nada, por assim dizer, atua sobre um mundo no qual toda reação se converte em reação em cadeia, e todo processo é causa de novos processos. 203


Muito embora as histórias sejam resultado inevitável da ação, não é o ator, e sim o narrador que percebe e faz a história. 205


a essência humana [...] só passa a existir depois que a vida se acaba, deixando conscientemente ser "essencial", deixar após si uma história e uma identidade merecedoras. 206


A rigor, a polis não é a cidade estado em sua localização física: é a organização da comunidade que resulta do agir e falar em conjunto, e o seu verdadeiro espaço situa-se entre as pessoas que vivem juntas com tal propósito, não importa onde estejam. [...] a ação e o discurso criam entre as partes um espaço ??? vapaza de situar-se adequadamente em qualquer tempo  e lugar. Trata-se do espaço da aparência,no mais amplo sentido da palavra [...] eu apareço aos outros e os outros a mim. [...] para os homens a realidade do mundo é garantida pela presença de outros. 211


O espaço da aparência passa a existir sempre que os homens se reúnem na modalidade  do discurso e da ação 211

Onde quer que os homens se reúnam, esse espaço existe potencialmente; mas só potencialmente, não necessariamente nem para sempre. 212

O poder só é efetivado enquanto apalavra e os atos não são brutais, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velasd intenções mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades. 212

Enquanto a força é qualidade natural de in indivíduo isolado, o poder passa a existir entre os homens quando eles agem juntos, e desaparece no instante em que eles se dispersam […] o poder tem espantoso grau de independência de fatores materiais. 212

O único fator material indispensável para a geração do poder é a convivência entre os homens. [...] Todo aquele que, por algum motivo, se isola e não participa dessa convivência, renuncia ao podere se torna impotente, por maior que seja a sua força e por mais válidas que sejam suas razões. p. 213


A força [...] é indivisível; e, embora, [...] seja equilibrada e controlada pela presença dos outros a interação da pluralidade significa, neste caso, uma definida limitação à força do indivíduo, que é mantida dentro de limites e pode vir a ser superada pelo potencial de poder da maioria. 214


nas condições da vida humana, a única alternativa do poder não é a resistência – impotente ante o poder – mas unicamente a força, que um homem sozinho passa exercer contra seu semelhante, e da qual um ou vários homens podem ter o monopólio ao se apoderarem dos meios de violência. Mas, se a violência é capaz de destruir o poder, jamais pode substituí-lo. Daí resulta a combinação política, nada incomum, de força e importância. 214


Só o poder pode efetivamente aniquilar a força, e portanto a força combinada da maioria é ameaça contante ao poder. O poder corrompe, de fato, quando os fracos se unem para destruir o forte, mas não antes. A vontade de poder [...] longe de ser uma característica do forte, e, como a cobiça e a inveja, um dos vícios do fraco, talvez o seu mais perigoso vício. 215


O veemente desejo de violência, tão característico de alguns dos melhores artistas criativos, pensadores [...] é  reação natural daqueles a quem a sociedade tentou privar de força através da fraude. 216


E sem o poder, o espaço da aparência produzido pela ação e pelo discurso em público desaparecerá tão rapidamente como o ato ou a palavra viva. 216


nocaso ho homo faber, tornar o mundo mais útil e belo;  no caso do animal laborans, tornar a vida mais fácil e longa. p. 220.


O único atributo do mundo que nos permite valiar a realidade é o fato de ser comum a todos nós [...] ajusta a realidade global os nossos cinco sentidos [...] Graças ao sendo comum, é possível saber que as outras percepções sensoriais mostram a realidade [...] Em qualquer comunidade [...] o declínio perceptível do senso comum e o visível recrudescimento da superstição e da credulidade constituem sinais inconfundíveis de alienação em relação ao mundo. 221


a convivência está mais presente no labor que em qualquer outra atividade [...] todos [...] valores derivados do labor, além de sua função óbvia no processo vital, são inteiramente sociais e, em essência, não diferem do prazer adicional que se tem quando se come e bebe em companhia dos outros. A sociabilidade que há nessas atividades [...] não se baseia em igualdade mas em uniformidade. p. 225


a emancipação do operário moderno [...] visou enobrecer a própria atividade do labor, objetivo que foi atingido muito antes da concessão de direitos civis e individuais ao operário como pessoa. Contudo, um dos efeitos colaterais importantes da verdadeira emancipação dos operários foi a admissão, mais ou menos súbita, na esfera pública, de todo um novo segmento da população que, assim, pôde aparecer em público. p. 229-230


Do ponto de vista do mundo e da esfera pública, a vida e a morte e tudo o que comprova a uniformidade são experiências não mundanas, anti-políticas e verdadeiramente transcendentes. 227


a perda no respeito nos tempos modernos, ou melhor, a convicção de que só se deve respeito ao que se admira ou se preza, constitui claro sintoma da crescente despersonalização da vida política e social. 255


a impossibilidade de permaneecrem como senhores únicos do que fazem, de conhecerem as consequencias de seus atos e de confiarem no futuro é o preço que pagam pela pluralidade e pela realidade, pela alegria de conviverem com os outros num mundo cuja realidade é assegurada a cada um pela presença de todos. 256


Fluindo na direção da morte, a vida do homem arrastaria consigo, inevitavelmente, todas as coisas humanas para a ruína e destruição, se não fosse a faculdade humana de perene advertência de que os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para começar. 258


a descoberta do planeta, o mapeamento de suas terras e o levantamento cartográfico de seus mares levaram muitos anos e só agora estão chegando ao fim. Só agora o homem tomou plena posse da sua morada mortal e enfeixou os horizontes infinitos, tentadora e ameaçadoramente abertos a todos as eras anteriores, para formar um globo cujos majestosos contornos e detalhes geográficos ele conhece como as linhas da própria mão. 262


Nas condições modernas, a bancarrota decorre não da destruição, mas da conservação, porque a própria durabilidadee dos objetos conservados é o maior obstáculo ao processo de reposição, cuja velocidade em constante crescimento é a única coisa constante que resta onde se estabelece esse processo. 265


O que distingue a era moderna é a alienação em relação ao mundo. 266


A expropriação, o fato de que certos grupos foram despojados de seu lugar no mundo e expostos, de mãos vazias, às conjunturas da vida, criou o original acúmulo de riqueza e a possibilidade de transformar essa riqueza em capital através do trabalho. Juntos, estes dois [...] constituíram as condições para o surgimento de uma economia capitalista. 267


A ascensão da sociedade trouxe consigo o declínio simultâneo das esferas pública e privada; mas o eclipse de um mundo público comum, fator tão crucial para a formação da massa solitária e tão perigoso na formação da mentalidade, alienada do mundo, dos modernos movimentos ideológicos de massas, começou com a perda, muito mais tangível, da propriedade privada de um pedaço de terra neste mundo. 269


No reino das ideias, existem apenas a originalidade e a profundidade, que são qualidades pessoais, mas nenhuma novidade absoluta ou objetiva; as ideias vêm e vão, duram algum tempo, podem até alcançar certa imortalidade própria, dependendo do seu poder de iluminar e esclarecer, que vive e perdura independentemente do tempo e da história. 271


embora a tecnologia demonstre a verdade dos mais abstratos conceitos da ciência moderna, prova apenas que o homem sempre pode aplicar os resultados de sua mente e que, não importa o sistema que empregue para explicar os fenômenos naturais, será sempre capaz de adotá-lo como princípio orientador nas atividades de fabricar e agir. p. 300


A história mostra claramente que a moderna tecnologia resultou não da evolução daquelas ferramentas que o homem sempre havia inventado para o duplo fim de atenuar o labor de de erigir o artifício humano, mas exclusivamente da busca de conhecimento inútil, inteiramente desprovido de senso prático. p. 302


Se tivéssemos de confiar somente nos chamados instintos práticos do homem, jamais teria havido qualquer tecnologia digna de nota. p. 302


os filósofos experimentaram com o próprio ser não menos radicalmente e talvez mais afoitamente que os cientistas experimentaram com a natureza. 307


os processos [...] e não as ideias [...] tornam-se na era moderna os guias das atividades de fazer e de fabricar, que são as atividades do homo faber. 313


A derrota do homo faber pode ser explicada em termos de transformação inicial da física em astrofísica, das ciências naturais em ciência "universal". O que resta a explicar é por que esta derrota terminou com a vitória do animal laborans; por que, com o enaltecimento da vita activa o labor veio a ser [...] aquela atividade a ser promovida à mais alta posição entre as capacidades do homem [...] a vida invalidou todas as outras considerações. p. 326-327


Se recuarmos em pensamento até Da Vinci, poderemos perfeitamente imaginar que o desenvolvimento da humanidade teria sido inevitavelmente dominado por uma revolução tecnológica. p. 333


Foi só quando perdeu seu ponto de referência na vita contemplativa que a vita activa pôde tornar-se vida ativa no sentido mais amplo do termo; e foi somente porque esta vida ativa se manteve ligada à vida como único ponto de referência que a vida em si, o laborioso metabolismo do homem com a natureza, pôde tornar-se ativa e exibir toda a sua fertilidade. 333


Se compararmos o mundo moderno com o mundo do passado, veremos que a perda da experiência humana acarretada por esta marcha de acontecimentos é extraordinariamente marcante. Não foi apenas, e nem sequer basicamente, a contemplação que se tornou experiência inteiramente destituída de significado. O próprio pensamento, ao tornar-se mera "previsão de consequências", passou a ser função do cérebro, com o resultado de que se descobriu que os instrumentos eletrônicos exercem essa função muitíssimo melhor do que nós. A ação logo passou a ser, e ainda é, conhecida em termos de fazer e fabricar, exceto que o fazer, dada a sua mundanidade e inerente indiferença à vida, era agora visto como apenas outra forma de labor, como função mais complicada mas não mais misteriosa do processo vital. 335


demonstramos ser suficientemente engenhosos para descobrir meios de atenuar as fadigas e penas da vida, ao ponto em que a eliminação do labor do âmbito das atividades humanas já não pode ser considerada utópica. Pois, mesmo agora, "labor" é uma palavra muito elevada, muito ambiciosa para o que estamos fazendo ou pensamos que estamos fazendo no mundo em que passamos a viver. O último estágio de uma sociedade de operários, que é a sociedade de detentores de empregos, requer de seus membros um funcionamento puramente automático, como se a vida individual realmente houvesse sido afogada no processo vital da espécie, e a única decisão ativa exigida do indivíduo fosse deixar-se levar, por assim dizer, abandonar a sua individualidade, as dores e as penas de viver ainda sentidas individualmente, e aquiescer num tipo funcional de conduta entorpecida e "tranquilizadora". 335


Nunca ele está mais ativo do que quando nada faz, nunca está menos só que quando a sós consigo mesmo. Catão p. 338


o labor é uma atividade  assinalada pela necessidade e concomitante futilidade do processo biológico, do qual deriva, uma vez que é algo que se consome no próprio metabolismo, individual ou coletivo. p. 345


o trabalho cria coisas extraídas da natureza, convertendo o mundo num espaço de objetos partilhados pelo homem. p. 345




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