Um livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive. (Padre Antônio Vieira)

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade.

GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991. 177 p.


Os modos de vida produzidos pela modernidade nos desvencilharam de todos os tipos tradicionais de ordem social, que uma maneira que não tem precedentes. Tanto em sua extensionalidade quanto em sua intencionalidade [...] estabelecer formas de interconexão social que cobrem o globo, em termos intencionais, elas vieram a alterar algumas das mais íntimas e pessoais característica da nosso existência cotidiana. p. 14


como [...] identificar as descontinuidades que separam as instituições sociais modernas das ordens sociais tradicionais? [...] uma é o ritmo de mudança [...] as civilizações tradicionais podem ter sido consideravelmente mais dinâmicas que outros sistemas pré modernos, mas a rapidez da mudança em condições de modernidade é extrema [...] é mais óbvio no que toca a tecnologia, permeia todas as [...] esferas. Uma segunda descontinuidade é o escopo da mudança. Conforme diferentes áreas do globo são postas em interconexão, ondas de transformação social penetram através de virtualmente toda a superfície da terra. A terceira característica diz respeito à natureza intrínseca das instituições modernas. . Algumas formas sociais modernas simplesmente não se encontram em períodos históricos precedentes. p. 15-16


O problema da ordem é visto aqui como um problema de distanciamento tempo-espaço - as condições nas quais o tempo e o espaço são organizados de forma a vincular presença e ausência. p. 22-23


O dinamismo da modernidade deriva da separação do tempo e do espaço e de sua recombinação em formas que permitem o zoneamento tempo-espacial preciso da vida social. O desencaixe dos sistemas sociais; e da ordenação e reordenação reflexiva das relações sociais à luz das contínuas entradas (inputs) de conhecimento afetando as ações de indivíduos e grupos. p. 25


O esvaziamento do tempo é em grande parte a pré-condição para o esvaziamento do espaço e tem assim prioridade casual sobre ele. [...] a coordenação através do tempo é a base do controle do espaço [...] o desenvolvimento de espaço vazio pode ser entendido em termos de separação entre espaço e lugar. Lugar é melhor conceitualizado por meio da ideia de localidade, que se refere ao cenário físico da atividade social como situado geograficamente. . p. 26-27


Nas sociedades pré-modernas, espaço e tempo coincidem amplamente, na medida em que as dimensões espaciais da vida social são, para a maioria da população, e para quase todos os efeitos, dominadas pela presença - por atividades localizadas. O advento da modernidade arranca crescentemente o espaço do tempo fomentando relações entre outros ausentes, localmente distantes de qualquer situação dada ou interação face-a-face. Em condições de modernidade o lugar se torna cada vez mais fantasmagórico, isto é, os locais são completamente penetrados e moldados em termos de influências sociais bem distantes deles. O que estrutura o local não é simplesmente o que está presente na cena; a forma visível do local oculta as relações distanciadas que determinam sua natureza. p. 27


A separação entre o tempo e o espaço não deve ser vista como um desenvolvimento unilinear, no qual não há reversões ou que é todo abrangente. Pelo contrário, como todas as tendências de desenvolvimento, ela tem traços dialéticos provocando características opostas. Além do mais, o rompimento entre tempo e espaço fornece uma base para sua recombinação em relação à atividade social. p. 28-29


Por que a separação entre tempo e espaço é tão importante para o extremo dinamismo da modernidade? Em primeiro lugar, ela é a condição principal do processo de desencaixe [...] a separação entre tempo e espaço e sua formação em dimensões padronizadas, "vazias", penetram as conexões entre a atividade social e seus "encaixes" nas particularidades dos contextos de presença. As instituições desencaixadas dilatam amplamente o escopo do distanciamento tempo-espaço e, para ter esse efeito, dependem da coordenação através do tempo e do espaço. Este fenômeno serve para abrir múltiplas possibilidades de mudança liberando das restrições dos hábitos e das práticas locais. p. 28


As organizações modernas são capazes de conectar o local e o global de formas que seriam impensáveis em sociedades mais tradicionais, e, assim fazendo, afetam rotineiramente a vida de milhões de pessoas. p. 18


Em terceiro lugar, a historicidade radical associada à modernidade depende de modos de "inserção" no tempo e no espaço que não eram disponíveis para as civilizações precedentes. A "história", como a apropriação sistemática do passado para ajudar a modelar o futuro [...] Um sistema de dilatação padronizado [...] possibilita uma apropriação de um passado unitário, mas muito de tal "história" pode estar sujeito a interpretações contrastantes [...] tempo e espaço são recombinados para formar uma estrutura histórico-mundial genuína de ação e experiência. p. 28-29


o desencaixe dos sistemas sociais. [...] "deslocamento" das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço. p. 29


dois tipos de mecanismos de desencaixe [...] envolvidos no desenvolvimento das instituições sociais modernas: O primeiro deles denomino de criação de fichas simbólicas; o segundo chamo de estabelecimento de sistemas peritos.


Por fichas simbólicas quero significar meios de intercâmbio que podem ser "circulados" sem ter em vista as características específicas dos indivíduos ou grupos que lidam com eles em qualquer conjuntura particular. Vários tipos de fichas simbólicas podem ser distinguidos, tais como os meios de legitimação política; devo me concentrar aqui na ficha do dinheiro. p. 30


O dinheiro, pode-se dizer, é um meio de retardar o tempo e assim separar as transações de um local particular de troca [...] é um meio de distanciamento tempo-espaço. [...] possibilita a realização de transações entre agentes amplamente separados no tempo e no espaço. p. 32


[...] não se relaciona ao tempo [...] como um fluxo, mas [...] como um meio de vincular tempo-espaço associando instantaneidade e adiamento, presença e ausência. p. 33


Por sistemas peritos quero me referir a sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje [...] ao estar simplesmente em casa, estou envolvido num sistema perito, ou numa série de tais sistemas, nos quais deposito minha confiança [...] tenho "fé" [...] não é tanto neles [...] na autenticidade do conhecimento perito (expert knowledge). p. 35


Quando estaciono o carro no aeroporto e embarco num avião, ingresso em outros sistemas peritos, dos quais meu próprio conhecimento técnico é, no melhor dos casos, rudimentar. Os sistemas peritos são mecanismos de desencaixe porque, em comum com as fichas simbólicas, eles removem as relações sociais das imediações do contexto. Ambos [...] pressupõem, embora também promovam, a separação entre tempo e espaço como condição do distanciamento tempo-espaço que eles realizam. Um sistema perito desencaixa da mesma forma que uma ficha simbólica, fornecendo "garantias" de expectativas através de tempo-espaço distanciados. p. 36


A confiança está relacionada à ausência no tempo e no espaço. Não haveria necessidade de se confiar em alguém cujas atividades fossem continuamente visíveis e cujos processos de pensamento fossem transparentes, ou de se confiar em algum sistema cujos procedimentos fossem inteiramente conhecidos e compreendidos. [...] a condição principal de requisitos para a confiança não é a falta de poder, mas a falta de informação plena. p. 40


Toda confiança é num certo sentido confiança cega! p. 41


Pode-se falar de confiança em fichas simbólicas ou sistemas peritos, mas isto se baseia na fé, na correção de princípios dos quais se é ignorante, não na fé na "probidade moral" (boas intenções) de outros. p. 41


A confiança pode ser definida como crença na credibilidade de uma pessoa ou sistema, tendo em vista um dado conjunto de resultados ou eventos, em que essa crença expressa uma fé na probidade ou amor de um outro, ou na correção de princípios abstratos (conhecimento técnico). p. 41


Todos os seres humanos rotineiramente "se mantêm em contato" com as bases do que fazem como parte integrante do fazer. Denominei isto [...] de "monitoração reflexiva da ação". p. 43


Nas culturas tradicionais, o passado é honrado e os símbolos valorizados porque contêm e perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um modo de integrar a monitoração da ação com a organização tempo-espacial da comunidade. [...] uma maneira de lidar com o tempo e o espaço, que insere qualquer atividade ou experiência particular dentro da continuidade do passado, presente e futuro, sendo estes por sua vez estruturados por práticas sociais recorrentes. p. 44


A escrita expande o nível do distanciamento tempo-espaço e cria uma perspectiva de passado, presente e futuro onde a apropriação reflexiva do conhecimento pode ser destacada da tradição designada. p. 44


A reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter. [...] todas as formas de vida social são parcialmente constituídas pelo conhecimento que os atores têm delas [...] em todas as culturas, as práticas sociais são rotineiramente alteradas à luz de descobertas sucessivas que passam a informá-las. Mas somente na era da modernidade a revisão da convenção é radicalizada para se aplicar (em princípio) a todos os aspectos da vida humana, inclusive à intervenção tecnológica no mundo material. p. 45


[...] reflexividade indiscriminada - que [...] inclui a reflexão sobre a natureza da própria reflexão. p. 46


Quando as reivindicações da razão substituíram as da tradição, elas pareciam oferecer uma sensação de certeza maior do que a que era propiciada pelo dogma anterior. [...] não vemos que a reflexividade da modernidade de fato subverte a razão, pelo menos onde a razão é entendida como ganho de conhecimento certo. A modernidade é constituída por e através de conhecimento reflexivamente aplicado, mas a equação entre conhecimento e certeza revelou-se erroneamente interpretada. Estamos em grande parte num mundo que é inteiramente constituído através de conhecimento reflexivamente aplicado, mas onde, ao mesmo tempo, não podemos nunca estar seguros de que qualquer elemento dado deste conhecimento não será revisado. p. 46


No coração do mundo da ciência sólida, a modernidade vagueia livre. p 46


Daí ser falsa a tese de que mais conhecimento sobre a vida social [...] é igual ao maior controle sobre nosso destino. [...] A expansão do nosso entendimento do mundo social poderia produzir uma abrangência progressivamente mais elucidativa das instituições humanas e, daí, crescente "controle" tecnológico sobre elas, se a vida social fosse inteiramente separada do conhecimento humano ou se esse conhecimento pudesse ser filtrado continuamente nas razões para a ação social, produzindo passo a passo aumentos na "racionalidade" do comportamento em relação a necessidades específicas. p. 50


Poder diferencial. A apropriação do conhecimento não ocorre de uma maneira homogênea, mas é com frequência diferencialmente disponível para aqueles em posição de poder, que são capazes de colocá-lo a serviços de interesses seccionais. p. 50


o papel dos valores. As mudanças das ordens de valores não são independentes das inovações [...] se o conhecimento novo pudesse ser empregado sobre uma bases racional transcendental de valores, esta situação não se aplicaria. Mas não existe tal base racional de valores, mas as mudanças na perspectiva derivadas de inputs de conhecimento têm uma relação móvel com as mudanças nas orientações de valores. p. 50


o conhecimento deste mundo contribui para o seu caráter instável ou mutável. p. 51


Pós-modernismo, se é que significa alguma coisa, é mais apropriado para se referir a estilos ou movimentos no interior da literatura, artes plásticas e arquitetura. Diz respeito a aspectos da reflexão estética sobre a natureza da modernidade. p. 52


[...] a trajetória do desenvolvimento social está nos tirando das instituições da modernidade rumo a um novo e diferente tipo de ordem social. O pós-modernismo, se ele existe de forma válida, pode exprimir uma consciência de tal transição mas não mostra que ela existe. p. 52


disparidade do passado, [...] nada pode ser conhecido com alguma certeza, desde que todos os "fundamentos" preexistentes da epistemologia se revelaram se credibilidade; que a história é destituída de teleologia e consequentemente nenhuma versão de "progresso" pode ser plausivelmente defendida; e que uma nova agenda social e política surgiu com a crescente proeminência de preocupações ecológicas e talvez de novos movimentos sociais em geral. p. 52


[...] não é possível nenhum conhecimento sistemático das ações ou inclinações humanas ou do desenvolvimento social. p. 52-53


O pós-modernismo tem sido associado não apenas com o fim da aceitação de fundamentos mas com o "fim da história". A "história" não tem forma intrínseca nem teleologia total. Uma pluralidade de histórias pode ser escrita, e estas não podem ser ancoradas por referência a um ponto arquimediano (tal como a ideia de que a história tem uma direção evolucionária). A história não deve ser equacionada à "historicidade", pois esta última está claramente ligada às instituições da modernidade. p. 55


Devemos ser cuidadosos com o modo de entender a historicidade. Ela pode ser definida como o uso do passado para ajudar a moldar o presente, mas não depende de um respeito pelo passado. Pelo contrário, historicidade significa o conhecimento sobre o passado como um meio de romper com ele - ou, ao menos, manter apenas o que pode ser justificado de uma maneira proba*. Blumenberg. 1981, p. 56


A historicidade na verdade, nos orienta primeiramente para o futuro. O futuro é visto como essencialmente aberto, embora como contrafatualmente conceitual sobre linhas de ação assumidas com possibilidades futuras em mente. Este é um aspecto fundamental do "alongamento" tempo-espaço que as condições da modernidade tornam possível e necessário. A "futurologia" - o mapeamento de futuros possíveis/desejáveis/disponíveis - se torna mais importante de mapear o passado. Cada um dos tipos de mecanismos de desencaixe mencionados acima pressupõe uma orientação futura deste tipo. p. 56


A ruptura com as concepções providenciais da história, a dissolução da aceitação de fundamentos, junto com a emergência do pensamento contrafatual orientado para o futuro e o "esvaziamento" do progresso pela mudança contínua, são tão diferentes das perspectivas centrais do iluminismo que chegam a justificar a concepção de que ocorreram transições de longo alcance. p. 57


Foram distinguidas três fontes dominantes do dinamismo da modernidade, cada uma vinculada às outras: a separação do tempo-espaço. Esta é a condição do distanciamento tempo-espaço de escopo indefinido; ela propicia meios de zoneamento preciso temporal e espacial; o desenvolvimento de mecanismos de desencaixe. Este retira a atividade social dos contextos localizados, reorganizando as relações sociais através de grandes distância tempo-espaciais. p. 58


A apropriação reflexiva do conhecimento. A produção de conhecimento sistemático sobre a vida social torna-se integrante de reprodução do sistema, deslocando a vida social da fixidez da tradição. p. 58-59


Tomadas em conjunto, estas três características das instituições modernas ajudam a explicar por que viver no mundo moderno é mais semelhante a estar a bordo de um carro de Jagrená em disparada [...] do que estar num automóvel a motor cuidadosamente controlado e bem dirigido. A apropriação reflexiva do conhecimento, que é intrinsecamente energizante mas também necessariamente instável, se amplia para incorporar grandes extensões de tempo-espaço. Os mecanismos de desencaixe fornecem os meios desta extensão retirando as relações sociais de sua "situacionalidade" em locais específicos. p. 59


Os mecanismos de desencaixe podem ser representados como:


Fichas simbólicas e sistemas peritos envolvem confiança, enquanto distinta de crença baseada em conhecimento indutivo fraco. p. 59


A confiança opera em ambientes de risco, nos quais podem ser obtidos níveis variáveis de segurança. p. 59


O conhecimento ou "reivindicações de conhecimento" reflexivamente aplicado à atividade social é filtrado por quatro conjuntos de fatores: p. 59


Poder diferencial. Alguns indivíduos ou grupos estão mais prontamente aptos a se apropriar de conhecimento especializado do que outros. p. 59


O papel dos valores. Os valores e o conhecimento empírico se vinculam através de uma rede de influências mútuas. p. 59


O impacto das consequências não pretendidas. O conhecimento sobre a vida social transcende as intenções daqueles que o aplicam para fins transformativos. p. 59-60


A circulação do conhecimento social na hermenêutica dupla. O conhecimento reflexivamente aplicado às condições de reprodução do sistema altera intrinsecamente as circunstâncias às quais ele originariamente se referia. p. 60


Devemos ver capitalismo e industrialismo como feixes organizacionais ou dimensões diferentes envolvidos nas instituições da modernidade. p. 61


A noção de industrialismo se aplica a cenários de alto tecnologia em que a eletricidade é a única fonte de energia, e onde microcircuitos eletrônicos são os únicos dispositivos mecanizados. [...] afeta não apenas o local de trabalho, mas os transportes, as comunicações e a vida doméstica. p. 62


Tal concentração administrativa depende, por sua vez, do desenvolvimento de condições de vigilância bem além daquelas características das civilizações tradicionais, e o aparato de vigilância constitui uma terceira dimensão institucional associada [...] à ascensão da modernidade. A vigilância se refere à supervisão das atividades da população súdita na esfera política. [...] pode ser direta [...] mas, mais caracteristicamente, ela é indireta e baseada no controle da informação. p. 63


As dimensões institucionais da modernidade envolvem vigilância, poder militar, industrialismo e capitalismo. p. 65


O industrialismo se torna o eixo principal da interação dos seres humanos com a natureza em condições de modernidade. Na maior parte das culturas pré-modernas, mesmo nas grandes civilizações, os seres humanos se viam em continuidade com a natureza. Suas vidas estavam atadas aos movimentos e disposições da natureza [...] a indústria moderna, modelada pela aliança da ciência com a tecnologia, transforma o mundo da natureza de maneiras inimagináveis as gerações anteriores [...] os seres humanos vivem em um ambiente criado. 66


A estrutura conceitual do distanciamento tempo-espaço dirige nossa atenção às complexas relações entre envolvimentos locais (circunstâncias de co-presença) e interação através da distância (as conexões da presença e ausência). Na era moderna, o nível de distanciamento tempo-espaço é muito maior do que em qualquer período precedente, e as relações entre formas sociais e ventos locais e distantes se tornam correspondentemente alongadas. A globalização se refere essencialmente a este processo de alongamento, na medida em que as modalidades de conexão entre diferentes regiões ou contextos sociais se enredaram. 69


A globalização pode assim ser definida como a intensificação das relações sociais em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distância e vice-versa. 69


quero complementar a noção de desencaixe com a de reencaixe. Com este termo me refiro à reapropriação ou remodelação de relações sociais desencaixadas de forma a comprometê-las (embora parcial ou transitoriamente) a condições locais de tempo e lugar. 83


distinguir entre [...] compromissos com rosto e compromissos sem rosto (facework commitents e faceless commitends) ou contatos pessoais e impessoais. Os primeiros se referem a relações verdadeiras que são mantidas por, ou expressas em conexões sociais estabelecidas em circunstâncias de co-presença. Os segundos dizem respeito ao desenvolvimento de fé em fichas simbólicas ou sistemas peritos, os quais, tomamos em conjunto, devo chamar de sistemas abstratos. Minhas teses gerais são as de que todos os mecanismos de desencaixe interagem com contextos reencaixados de ação, os quais podem agir ou para sustentá-los ou para solapá-los; e de que os compromissos sem rosto estão vinculados de maneira ambiguamente análoga àqueles que exigem a presença de rosto. 84


Os mecanismos de interação concentrada ou encontros, são bastante diferentes. Encontros, sejam com estranhos, conhecidos ou íntimos, também envolvem práticas generalizadas vinculadas a manutenção da confiança. 87


Em certas circunstâncias, a confiança em sistemas abstratos não pressupõe encontro algum com os indivíduos ou grupos que são de alguma forma responsáveis por eles. Mas na grande maioria das instâncias tais indivíduos ou grupos estão envolvidos, e devo me referir a encontros com eles por parte dos atores leigos como os pontos de acesso dos sistemas abstratos. Os pontos de acesso dos sistemas abstratos são o terreno comum dos compromissos com rosto e sem rosto. 87


a natureza das instituições modernas está profundamente ligada ao mecanismo da confiança em sistemas abstratos, especialmente confiança em sistemas peritos. Em condições de modernidade, o futuro está sempre aberto [...] em termos da reflexividade social do conhecimento [...] ao qual as práticas sociais são organizadas. Este caráter contrafatual, orientado para o futuro [...] é amplamente estruturado pela confiança conferida aos sistemas abstratos. 87


A fidedignidade conferido pelos atores leigos aos sistemas peritos não é apenas uma questão [...] de gerar uma sensação de segurança [...] é uma questão de cálculo de vantagem e risco em circunstâncias onde o conhecimento perito simplesmente não proporciona esse cálculo mas na verdade cria (ou reproduz) o universo de eventos, como resultado do contínua implementação reflexiva desse próprio conhecimento. 88


Os códigos de ética profissional, em certos casos secundados por sanções legais, formam um meio pelo qual a confiabilidade de colegas ou associações é controlada internamente. 90


Relações de confiança são básicas para o distanciamento tempo-espaço dilatado em associação com a modernidade. A confiança em sistemas assume a forma de compromissos sem rosto, nos quais é mantida a fé no funcionamento do conhecimento em relação ao qual o pessoa leiga é amplamente ignorante. A confiança em pessoas envolve compromissos com rosto, nos quais são solicitados indicadores da integridade de outros (no interior de arenas de ação dadas). O reencaixe se refere a processos por meio dos quais compromissos sem fiança rosto são mantidos ou transformados por presença de rosto. A desatenção civil [...] é o ruído renovador de confiança que se dá no pano de fundo da formação e dissolução de encontros, envolvendo seus próprios mecanismos específicos de confiança, isto é, compromissos com rosto. Pontos de acesso são pontos de conexão entre indivíduos ou coletividades leigos e os representantes de sistemas abstratos. São lugares de vulnerabilidade para os sistemas abstratos, mas também junções nas quais a confiança pode ser mantida ou reforçada. 91


Pois só se exige confiança onde há ignorância. 92


As representações populares da perícia técnica e científica mesclam geralmente respeito com atitudes de hostilidade ou medo, como nos estereótipos do técnico sem senso de humor com pouco conhecimento das pessoas comuns, ou do cientista louco. Profissões cuja reivindicação a um conhecimento especializado é vista sobretudo como um círculo fechado, tendo uma a terminologia aparentemente inventada para obstruir o leigo [....] tendem a ser vistas com uma visão particularmente deformada. O respeito pelo conhecimento técnico existe comumente em conjunção com uma atitude pragmática para com sistemas abstratos, baseadas em atitudes de ceticismo ou reserva. Muitas pessoas [...] fazem [....] barganha com a modernidade em termos da confiança que concedem às fichas simbólicas e sistemas peritos (deferência x ceticismo, alivio x medo). 93


link com filmes onde uma pessoa descobre a verdade. jogos vorazes, in time, oblivion, etc.


tabela 104


A confiança em sistemas abstratos é a condição do distanciamento tempo-espaço e das grandes áreas que segurança na vida cotidiana que as instituições modernas oferecem em comparação com o mundo tradicional. As rotinas que estão integradas aos sistemas abstratos são centrais à segurança ontológica em condições de modernidade. [...] cria novas formas de vulnerabilidade psicológica, e a confiança em sistemas abstratos não é psicologicamente gratificante como a confiança em pessoas o é. 116


há uma conexão direta (embora dialética) entre as tendências globalizantes da modernidade e o que devo chamar de transformação da intimidade nos contextos da vida quotidiana; [...] pode ser analisada em termos da adição de mecanismos de confiança; e que as relações de confiança pessoal, nestas circunstâncias, estão intimamente relacionadas à situação na qual a construção do eu se torna um projeto reflexivo. link com identidade 116


A amizade é com frequência um modo de reencaixe [...] não está diretamente envolvida nos [...] sistemas abstratos que superam [...] laços pessoais. O oposto de amigo [...] é conhecido, colega ou alguém que não conheço [...] honra x lealdade [...] sinceridade x autenticidade. 121



Com o desenvolvimento em sistemas abstratos, a confiança em princípios impessoais, bem como em outros anônimos, torna-se indispensável a existência social. A confiança impessoalizada desse tipo é discrepante da confiança básica. Há uma forte necessidade psicológica de achar outros em quem confiar, mas as conexões pessoais institucionalmente organizadas estão faltando em relação às situações sociais pré-modernas. [...] a vida cotidiana foi remodelados em conjunção com outras grandes mudanças sociais [...] sistemas abstratos tem um caráter vazio, amoralizado [...] impessoal submerge [...] o pessoal [...] uma transformação genuína da própria natureza do pessoal. Relações pessoais cujo principal objetivo é a sociabilidade, informadas pela lealdade e autenticidade, tornam-se uma das partes das situações sociais [...] tal qual distanciamento tempo-espaço. 122


A exclusão da maioria das arenas onde as políticas de maior consequência são elaboradas e as decisões tomadas força uma concentração sobre o eu; este é um resultado da falta de poder que a maioria das pessoas sente. 125


a transformação da identidade envolve o seguinte:

1 uma relação intrínseca entre as tendências globalizantes da modernidade e eventos localizados na vida cotidiana - uma conexão dialética, complicada entre o "extensional" e o "intencional";

2 a construção do eu como um projeto reflexivo, uma parte elementar da reflexividade da modernidade; um indivíduo deve achar sua identidade entre as estratégias e opções fornecidas pelos sistemas abstratos;

3 um impulso para a auto realização, fundamentado na confiança básica, que em contextos personalizados só pode ser estabelecida por uma "abertura" do eu para o outro;

4 a formação de laços pessoais e eróticos como "relacionamentos", orientados pela mutualidade de auto revelação;

5 uma preocupação com a auto satisfação, que não é apenas uma defesa narcisista contra um mundo externo ameaçador, sobre os quais os indivíduos têm pouco controle , mas também em parte, uma apropriação positiva de circunstâncias nas quais as influências globalizadas invadem a vida cotidiana. 126


As fronteiras entre ocultar e revelar se alteraram, na medida em que muitas atividades outrora bastante distintas se encontram justapostas em domínios públicos unitários [...] estamos todos familiarizados com eventos , com ações, e com a aparência visível de cenários físicos a milhares de quilômetros de onde vivemos. O advento da mídia eletrônica sem dúvida acentuou estes aspectos de deslocamento, na medida em que enfatiza a presença tão instantaneamente e a tanta distância. 142


o correlativo do deslocamento é o reencaixe. Os mecanismos de desencaixe tiram as relações sociais e as trocas de informação de contextos espaço-temporais específicos, mas ao mesmo tempo propiciam novas oportunidades para sua reinserção [...] o mesmíssimo processo que leva à destruição das vizinhanças mais antigas da cidade e a sua substituição por enormes edifícios [...] permite com frequência o enobrecimento de outras áreas e a re-criação da localidade. 142


nas relações de intimidade do tipo moderno, a confiança é sempre ambivalente, e a possibilidade de rompimento está sempre mais ou menos presente. os laços pessoais podem ser rompidos, e os laços de intimidade podem voltar à esfera dos contatos impessoais - no caso amoroso rompido, o íntimo torna-se de súbito novamente um estranho. 144


mesmo riscos de alta consequência não são apenas contingências remotas [...]. alguns destes riscos, e muitos outros que são potencialmente ameaçadores à vida para os indivíduos ou que os afetam significativamente de outra maneira, se impõe direto no âmago das atividade cotidianas [...]. Isto é verdadeiro também para uma profusão de mudanças tecnológicas que influenciam as possibilidades de vida. [...] A mistura de risco e oportunidade é tão complexa em muitas das circunstâncias envolvidas que é extremamente difícil para os indivíduos saberem até onde atribuir confiança a prescrições ou sistemas específicos e em que medida suspendê-la. Como se pode conseguir comer "saudavelmente", por exemplo, quando todos os tipos de alimentos possuem qualidades tóxicas de uma espécie ou de outra e quando o que é afirmado como sendo "bom para você" por peritos nutricionistas varia com as mudanças de estado do conhecimento científico? 147-148



PM

MR

1 Entende a transição corrente em termos epistemológicos ou como decompondo totalmente a epistemologia


02 Enfoca as tendências centrífugas das transformações sociais correntes e de seu caráter de deslocamento.


3 vê o eu como dissolvido ou desmembrado pela fragmentação da experiência.


4 afirma a contextualidade das reivindicações de verdade ou as vê como "históricas".


5 Teoriza a falta de poder que os indivíduos sentem em face das tendências globalizantes.


6 Vê o "esvaziamento" da vida cotidiana como resultado da introdução dos sistemas abstratos.


7 Vê o engajamento político coordenado, impossibilitado pela primazia da contextualidade e dispersão.


8 Define a pós-modernidade como o fim da epistemologia/do indivíduo/ da ética.

1 Identifica os desenvolvimentos institucionais que criam um sentido de fragmentação e dispersão.


2 Vê a alta modernidade como um conjunto de circunstâncias em que a dispersão está dialeticamente vinculada a tendências profundas para uma integração global.


3 Vê o eu como mais do que, apenas, um lugar de forças entrecruzadas; a modernidade possibilita processos ativos de auto identidade.


4 Afirma que as características universais das reivindicações de verdade se impõe a nós de uma maneira irresistível dada a primazia dos problemas de um tipo global. O conhecimento sistemático sobre estes desenvolvimentos são é impedido pela reflexividade da modernidade.


5 Analisa uma dialética da falta e da posse de poder em termos tanto da vivência como da ação.


6 Vê a vida cotidiana como um complexo ativo de reações aos sistemas abstratos, envolvendo tanto apropriação como perda.


7 Vê o engajamento político coordenado como possível e necessário, num nível global bem como localmente.


8 define a pós-modernidade como transformações possíveis para "além" das instituições da modernidade

Comparação entre as concepções da pós modernidade e da modernidade radicalizada. 150


O mundo é "um" em certo sentido, mas radicalmente cindido por desigualdades de poder em outro. E um dos traços mais característicos da modernidade é a descoberta de que o desenvolvimento do conhecimento empírico não nos permite por si mesmo decidir entre diferentes posições de valor. 153


tipos de movimentos sociais: liberdade de expressão, movimentos democráticos; movimentos pacifistas; movimentos trabalhistas; movimentos ecológicos (contracultura). 159


O poder, em seu sentido mais amplo, é um meio de conseguir que as coisas sejam feitas. 161


Vivemos correntemente num período de alta modernidade. O que está além disso? Podemos atribuir algum sentido definido ao conceito de pós-modernidade? Que tipos de utopia podemos estabelecer, como projetos orientados para o futuro, que estejam vinculados aos rumos imanentes de desenvolvimento, e por conseguinte realistas? 162


perfil de uma ordem pós moderna: participação democrática de múltiplas camadas; desmilitarização; humanização da tecnologia; sistema pós-escassez. 163


Há certas provas de que muitas pessoas nos estados economicamente avançados vivenciam uma "fadiga do desenvolvimento" e também de uma consciência geral de que o crescimento econômico continuado não vale a pena, a menos que melhore ativamente a qualidade de vida da maioria (The poverty of progress, Ian Miles e John Irvine). 165


Riscos de alta consequência da modernidade: crescimento de poder totalitário; conflito nuclear ou guerra de grande escala; deterioração ou desastre ecológico; colapso dos mecanismos de crescimento econômico. 170


A intensificação das operações de vigilância propiciam muitas vias de envolvimento democrático, mas também tornam possível o controle setorial do poder político, apoiado pelo acesso monopolista aos meios de violência, como um instrumento de terror. 171


O apocalipse tornou-se corriqueiro, de tão familiar que é como um contrafatual da vida cotidiana; e, como todos os parâmetros de risco, ele pode tornar-se real. 172


Uma das consequências fundamentais da modernidade […] é a globalização. Esta é mais do que uma difusão das instituições ocidentais através do mundo, onde outras culturas são esmagadas. A globalização – que é um processo de desenvolvimento desigual que tanto fragmenta quanto coordena – introduz novas formas de interdependência mundial, nas quais, mais uma vez, não há "outros". 174


A modernidade é universalizante não apenas em termos de seu impacto global, mas em termos de conhecimento reflexivo fundamental ao seu caráter dinâmico. 174


Muitos dos fenômenos frequentemente rotulados como pós-modernos na verdade dizem respeito à experiência de viver num mundo em que presença e ausência se combinam de maneira historicamente novas. O progresso se torna esvaziado de conteúdo conforme a circularidade da modernidade se firma, e, num nível lateral, a quantidade de informação que flui diariamente para dentro, envolvida no fato de se viver em "um mundo", pode às vezes ser assoberbante. 176


A modernidade é inerentemente orientada para o futuro, de modo que o "futuro" tem o status d modelador contrafatual. Embora haja outras razões para isso, este é um fator sobre o qual fundamento a noção de realismo utópico. Antecipações do futuro tornam-se parte do presente, ricocheteando assim sobre como o futuro na realidade se desenvolve; o realismo utópico combina a "abertura de janelas" sobre o futuro com a análise das correntes institucionais em andamento pelas quais os futuros políticos estão imanentes no presente. 176


As utopias dos tipos realista são antitéticas tanto à reflexividade como à temporalidade da modernidade. Prescrições ou antecipações utópicas estabelecem uma linha básica para futuros estados de coisas que bloqueiam o caráter infinitamente aberto da modernidade. Num mundo pós-moderno, o tempo e o espaço já não seriam ordenados em sua interrelação pela historicidade. 176-177






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